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O adolescente entre a linguagem e o gozo

Lacan (1967-68) nadando contra a corrente, aponta que o essencial da linguagem não é comunicar, mesmo porque nem tudo poderá ser dito, por mais que se tente.

Em seu uso a linguagem porta um gozo, que marca a singularidade de cada sujeito, e ainda, comportaria certa dor de existir. “Desde Freud, acreditamos suficientemente nos efeitos da fala sobre o corpo para saber ouvir essa dor e responder à demanda [...]” (LACADEÉ, 2011, p.18)

Há algo que o sujeito não pode nomear e que irá o reenviar para um vazio. O adolescente irá se confrontar justamente com o vazio, frente as transformações do corpo e em face do desconhecido, as palavras já não são mais suficientes e conflitam justamente com o impossível de dizer.


A psicanálise pensa a adolescência como um processo de transição, na qual os efeitos decorrentes da puberdade provocam uma mudança no plano da subjetividade. Cada jovem atravessa esse momento de modo singular, e terá que encontrar uma maneira de lidar com estas transformações, construindo uma nova resposta diante do furo que a sexualidade faz no real. (Santiago, 2016)

É isto que Lacan (1974) irá trazer no prefácio a O despertar da primavera, quando aborda que a sexualidade na puberdade é o que faz furo no real.


Pelo fato das alterações que ocorrem no corpo serem experimentadas de forma singular, nem todos terão tranquilidade neste processo, e isto produz uma reviravolta na posição do sujeito. Surge uma nova apreensão imaginária do seu corpo, e também uma retomada de posição diante da palavra. (Silva, 2016)


Ainda mais quando se trata do encontro com o Outro sexo, e os efeitos que a tentativa do encontro sexual causam no sujeito. Vivemos em um momento em que está muito forte a desorientação sexual, os adolescentes têm uma facilidade muito grande para mudar de posição sexual, não importa mais qual o parceiro (se é homem ou se é mulher), tal separação (homem/mulher) não serve mais para regular o gozo sexual. Assim, eles vivem em busca de um ideal de satisfação. (DRUMMOND, 2016)


Isso só reforça o que Lacan (1972-1973) disse: “Não há relação sexual”, já que para todo sujeito, o gozo (por estar preso à linguagem), não estabelece nenhuma relação com o Outro. De acordo com Lacadée (2011, p.94), “Não há relação sexual, pois o sujeito só pode se relacionar com a sexualidade pelo que é permitido pela estrutura de linguagem”. Isso é verdade não só na relação homem e mulher (entre os parceiros sexuais), mas também na relação do homem com seus objetos de gozo.


A dificuldade é justamente sobre o que fazer quanto ao sexo. O sujeito, então, encontra-se embaraçado com a pulsão em sua inserção na linguagem, se deparando com este buraco, esse vazio na relação. Neste momento, entra em questão uma dimensão do ato, que implica uma decisão, uma tentativa de fazer surgir seu próprio ser. O ato seria a saída para o impasse da relação com o Outro, daquilo que é impossível de dizer e que leva ao sentimento de exílio. É o tempo de se desligar da autorização dos pais e se pronunciar e se responsabilizar pelos seus atos diante do Outro. (LACADÉE, 2011)



Se inicialmente é do encontro com o Outro que o sujeito irá consentir em entrar em uma língua comum, no momento da adolescência, ele irá tomar uma posição na língua, sua própria posição. Ocorre, assim, na adolescência o exílio do corpo de criança, das palavras infantis, do próprio gozo, justamente por não conseguir dizer o que acontece. Por um lado, ele pode entrar numa solidão intraduzível em palavras, ou ainda, justamente diante de uma novidade que desperta no seu corpo e no seu pensamento, se não consegue uma forma de dizer, ele utilizará da linguagem de maneira desrespeitosa e provocante numa tentativa de obter o reconhecimento de que há algo de novo nele. Alguns ainda, diante deste indizível que se torna insuportável, se utilizarão do próprio corpo numa tentativa de inventar uma nomeação para o que lhes acontece, através de recursos como tatuagem ou piercings.


Para Freud (1905), a adolescência reatualiza algumas escolhas infantis colocando a pulsão em jogo. No texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, ele aponta que a puberdade é marcada por mudanças que levarão a vida sexual infantil a sua configuração normal definitiva. Se antes a pulsão sexual predominante era auto erótica (seio, fezes), agora ela irá encontrar um objeto sexual. Com a puberdade, a escolha de objeto é, então, reatualizada e transferida para outra pessoa, não mais aquelas do seu meio familiar.


O objeto de gozo é uma tentativa de buscar uma saída significante para aquilo que é indizível, mas ao mesmo tempo o excesso de gozo que invade o corpo do adolescente o deixa fora do discurso, neste contexto as fugas ou errâncias serão as tentativas de se inscrever num laço social.



A inscrição na linguagem significa a mortificação de sua lalíngua íntima e particular, como apontou Lacan, e também o apaziguamento do gozo. Por outro lado, a parte de gozo que o sujeito não consegue colocar em palavras o leva a errância, a uma desorientação, podendo trazer até mesmo efeitos mortíferos para si.


Dessa maneira a psicanálise entende que o sofrimento ou o modo de agir em momentos de crises dos adolescentes, são reflexos do novo desejo que os agita, e esta escuta se torna a possibilidade de trazer para a linguagem aquilo de insuportável e angustiante.

“[...] a experiência de uma psicanálise permite, em vez de adormecê-los, mantê-los acordados em face do real, haja vista o estado necessário ao espírito ser o despertar. [...] o sujeito pode se tornar, para si mesmo, uma luz que lhe permite passar através do que obscurecia a sua vida”. (LACADÉE, 2011, p.107)


Há um grande desafio para clínica, pois como é possível dar lugar à palavra e ao desejo numa sociedade onde impera o gozo, o declínio do pai e a ausência dos sintomas?


Muitos adolescentes buscam hoje a análise a partir dos tropeços com o real e das falhas na tentativa de se defender dele. Dessa forma, a análise apresenta a possibilidade de ir além do sintoma que mortifica, possibilitando ao sujeito sustentar sua mudança de posição subjetiva diante do discurso familiar, e ainda, tentando encontrar para essas “errâncias” um ponto de maior estabilidade, para que o adolescente consiga ser de um modo diferente, podendo ter o respeito que tanto clama, sem que para isto seja necessário praticar atos tão mortíferos (enfrentamento dos limites, excessos de bebida, drogas, esportes radicais etc.).


Assim, é possível ao adolescente, por meio de suas singularidades, encontrar saídas diante deste encontro com o real, dando lugar aos seus sinthomas como um esforço de enunciação e invenção.


Não tem como abordar este tema que envolve a adolescência e a linguagem sem comentar o fato de que cuidar das escolas e reivindicar um ensino de qualidade virou uma transgressão, uma criminalização. Em sua coluna semanal, Eliane Brum aponta que a crise do Brasil é também de palavra, e que a potência da voz de Ana Júlia é a da palavra que tem corpo.


Termino então com uma citação da própria Ana Júlia: “A gente tem a presença da felicidade porque a gente percebe que deixamos de ser meros adolescentes e nos tornamos cidadãos comprometidos com o desenvolvimento do Brasil”.


Onde a palavra não foi suficiente, não foi ouvida - afinal, esses adolescentes são considerados vândalos, rebeldes, a escória da sociedade – foi preciso que ocorressem as ocupações enquanto um momento de decisão, uma saída para o impasse da relação com o Estado, para serem notados e capazes de se pronunciarem e se responsabilizarem por seus atos diante do Outro.


Referências

BRUM, E. Ana Júlia e a palavra encarnada. El país, 2016.

DRUMMOND, C. Adolescência: um esforço de enunciação. 2016.

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: . Rio de Janeiro: Imago, 2006.

LACADEÉ, P. A bússola do sim e do não. Cien digital, Belo Horizonte, n.16. mai. 2014.

_________. ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2011.

LACAN, J. Prefácio a O despertar da Primavera (1974). . Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

________. (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

________. Meu ensino (1967-68). Rio de Janeiro: Zahar.

SANTIAGO, A. L. Procrastinação, autoerótica e depreciação: sintomas dos jovens com relação ao saber. 2016.

SILVA, R. F. Argumento do XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: Adolescência, a idade do desejo. São Paulo, 2016.


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