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Suicídio e Psicanálise*

* Palestra realizada na Faculdade Multivix -Serra por ocasião do Setembro Amarelo -2016


PRÓLOGO

Inicio minha fala com uma pequena história: entre os anos de 2010 e 2011 estava participando de um cartel sobre o Seminário VII de Lacan: a ética da psicanálise. Em certo dia de estudos, a temática do suicídio se fez presente. Um colega psicanalista mostrou-se horrorizado com a possibilidade de que um paciente viesse a cometer suicídio:


- Imagina se um paciente seu se mata!


Quando prontamente uma colega psicanalista que também participava do cartel afirmou:

- Mas são justamente nossos pacientes que se matam!


1.

Esta frase teve um grande efeito de corte em minha prática: foi justamente ao escutar tal frase que percebi que se havia feito a escolha da psicanálise então a possibilidade do suicídio de pacientes se tornaria uma certeza. Ou seja, retomando a fala da colega, o psicanalista, diferentemente do pediatra, ou do nutricionista, ou do fisioterapeuta, é aquele que escuta o sofrimento do sujeito em seu mais alto grau, naquele momento em que o sujeito queixa-se da ausência do sentido da vida bem como do peso da existência bem como de um sofrimento o qual ele não consegue separar-se. Quando um sujeito chega para a análise ele vem justamente porque as invenções que ele havia feito para lidar com a vida já não mais funcionam, causando sofrimento, angústia e por vezes, desejo de morrer.


Sendo assim, penso em abordar a questão do suicídio a partir de duas vertentes não excludentes: pela via da cultura e pela via do sujeito. Reitero que não são excludentes e que muitas vezes falar de sujeito implica necessariamente em falar dos efeitos da cultura.


2 – O suicídio e sua relação com a cultura


Recentemente li na revista Radis, publicação da Fiocruz, que a Coréia do Sul é um dos países com maior índice de suicídios no mundo, sendo o primeiro lugar entre os países desenvolvidos. É também o primeiro lugar em suicídios de jovens e também na população da terceira idade. Minha mãe é fascinada com a cultura sul-coreana então indiretamente conheço um pouco também. Desta forma fiquei totalmente surpreso com esta notícia. Ora, como pode que o lado rico da Coréia, com seus jovens que hoje lançam moda mundial, que possuem alta tecnologia, possuem uma taxa de suicídio tão alta?


Quando assistimos aos clipes das músicas sul-coreanas, seus doramas (a novela deles) e mesmo observando seus maiores ídolos vemos uma explosão de cores, felicidade, humor. Desta forma, onde está a causa para este índice tão alto? Como sabemos a Coréia do Sul é a parte altamente desenvolvida da Coréia, berço das grandes empresas Samsung e LG, possui um regime democrático e forte parceria com os EUA, tendo inclusive bases militares norte-americanas instaladas em seu território. Portanto a cultura norte-americana se faz extremamente presente neste país.


Segundo o site da Revista Veja, o suicídio é morte mais comum entre jovens sul-coreanos. Ainda, de todos os jovens que participaram da pesquisa, 8,8% confessaram já ter pensado em cometer suicídio, sendo que 53,4% deles citaram a excessiva competitividade relacionada à educação como a principal causa de seus pensamentos nesse sentido. Em segundo lugar, vieram as dificuldades econômicas, com 28,1%, enquanto 15,8% asseguraram já ter cogitado a hipótese de acabar com sua vida devido a preocupações acerca de seu futuro após se formar na universidade.


Segundo artigo do IPUB/RJ muitos pesquisadores relacionam a alta taxa de suicídio ao rápido desenvolvimento econômico sul-coreano. Se há algo surpreendente a respeito do suicídio na Coreia é que as suas taxas eram muito baixas quando o país começou a se desenvolver economicamente, nos anos 1980 (6.6/100000). Há não muito tempo (1995) suas taxas eram de 10.8/100000. Chama a atenção também outro dado. Por que fazem tanto silêncio, por exemplo, em relação às assustadoras taxas verificadas na Groenlândia nas últimas décadas (mais de 80/100000/ano), especialmente a partir da implantação por lá do "Estado de Bem Estar Social" pelo governo da Dinamarca? As "boas intenções" desestruturaram o modo de vida Inuit, levando especialmente sua juventude, ao vazio do não pertencimento: nem ao modo de vida dito ocidental, nem à cultura de seus pais. Não se mexe nessas coisas de forma abrupta impunemente! A conta, entretanto, é sempre paga pelos mais fracos.


Segundo o site Koreapost as principais causas apontadas para estas tristes estatísticas na Coréia do Sul começam pelos idosos. Quase metade da população idosa do país vive abaixo da linha de pobreza, o que para um país desenvolvido e tecnológico como este é algo quase inimaginável. Contudo isso é facilmente compreensível quando se toma conhecimento de que não há uma política governamental de aposentadoria. Este fato, combinado com uma mudança drástica na velha estrutura social onde os filhos cuidavam de seus pais na velhice (pois todos moravam e trabalhavam juntos enquanto que atualmente os filhos saem de casa para a faculdade, as vezes longe de suas cidades natais, e nunca mais voltam) faz com que os idosos deem cabo de suas vidas por não verem saída para sua situação financeira ou por não quererem ser um peso nas vidas dos filhos. Outro fator relevante, desta vez, no índice de suicídios entre jovens é o sistema educacional. Considerado o segundo melhor do mundo e comprovadamente responsável pela produção de profissionais de altíssima qualidade, principalmente na área de exatas, o sistema educacional sul-coreano tem um grande problema – é extremamente competitivo. Todo aluno sonha em ir bem ao ensino médio, para ingressar em uma boa universidade a fim de conseguir os melhores empregos. Por conta disso, um aluno do ensino médio passa cerca de 16 horas por dia na escola e atividades relacionadas. Até 2005, os alunos iam para a escola de segunda a sábado. Além disso, a maioria dos resultados dos testes da Coreia do Sul é classificada em uma curva, levando a uma maior concorrência. Embora a educação da Coreia do Sul seja classificada consistentemente no topo em avaliações acadêmicas internacionais, a pressão e o stress são enormes e para muitos, a relação de hierarquia entre professores e alunos é muitas vezes considerada abusiva.


No ano de 2015 o portal de notícias UOL relatou que a competitividade feroz, a imensa pressão social e o desamparo à terceira idade explicam por que a Coreia do Sul é o país desenvolvido com a maior taxa de suicídios do mundo, apesar das várias e inventivas tentativas de conter esta tragédia.

Um cantor famoso é criticado na internet, um empreendedor perde dinheiro e honra após um fracasso profissional, um estudante não atinge a nota desejada no vestibular e um idoso dependente se sente como um fardo para a família. Os quatro casos são reais e aos sul-coreanos não soa estranho saber que essas pessoas se mataram. São frequentes os casos no país, onde diariamente 40 pessoas se suicidam.


São realizadas várias estratégias para tentar conter a onda de suicídio: na ponte Mapo, lugar em que muitas pessoas escolhem para suicidar-se existem mensagens que visam fazer com que as pessoas busquem ajuda bem como existem linhas telefônicas para contato direto. Ainda, empresas privadas como a Samsung fazem várias ações na ponte no sentido de inibir a ação. O site da BBC chegou a noticiar que empresas sul-coreanas chegam a fechar seus funcionários em caixões também como estratégia de inibir o pensamento suicida em seus funcionários.


Apesar das estratégias utilizadas pelo governo e pela iniciativa privada creio que a crítica deve ser mais intensa: de que maneira a cultura deste país promove os suicídios e como isto pode ser mudado em sua raiz? Sabe-se do rápido desenvolvimento econômico do país sul-coreano, porém será que isto vem acompanhado de valores que permitam garantir sentido e normatividade para a vida?


3 – Como a psicanálise pensa o suicídio?


Como efeito de introdução precisamos pontuar um conceito fundamental para melhor entender a temática do suicídio. Lacan cunhou o termo Outro (Autre) para indicar este lugar, “tesouro dos significantes”, responsável pela constituição do sujeito. Desta forma o sujeito da psicanálise não é solipsista, ou seja, ele não se forma sozinho, ele precisa deste Outro, a quem ele endereça sua fala e também é efeito dela. Lacan em certo momento do seu ensino chegou a dizer que o “inconsciente é o discurso do Outro”. O Outro é este lugar em que o sujeito se constitui. È ainda importante determinar que este Outro da cultura sofre transformações ao longo do tempo trazendo consequências para o sujeito da psicanálise.


Fornecido este início pode-se pensar como a psicanálise lida com a temática do suicídio. Com Freud temos dois textos básicos: “Contribuições para uma discussão acerca do suicídio” texto de 1910 e de certa forma seu complemento, “Luto e Melancolia”, texto de 1917. Se no primeiro texto Freud fala do papel das escolas na prevenção do suicídio ele afirma que ainda não possui muitas informações sobre o tema, mas que talvez a chave de leitura seja a partir da questão da melancolia e do luto, tema que ele irá desenvolver sete anos depois. Em Luto e Melancolia Freud afirma:


[...] na regressão desde a escolha objetal narcísica, é verdade que nos livramos do objeto; ele, não obstante, se revelou mais poderoso do que o próprio ego. Nas duas situações opostas, de paixão intensa e de suicídio, o ego é dominado pelo objeto, embora de maneiras totalmente diferentes. (FREUD, S. [1917] 1996), p.257)


Freud ainda irá trabalhar estes temas em O Ego e o Id (1923) e os Problemas do Masoquismo (1925).


Já com Lacan a temática do suicídio tem estreita relação com a questão do ato. Segundo Miller (2014) encontramos esta problemática especificamente em dois seminários de Lacan: o seminário VII da Ética da Psicanálise e o seminário XV intitulado o Ato Psicanalítico.


O Seminário VII é de grande valor nesta temática visto que é nele que Lacan irá demonstrar que contrariamente ao que propaga toda uma história filosófica da ética o sujeito não necessariamente vai agir em prol de um bem. Desde Aristóteles temos que uma postura ética implica o exercício do pensamento e a escolha da mediania, ou seja, a escolha da melhor medida para o sujeito. Lacan demonstra em seu Seminário dois pontos fundamentais e que são contrários a tradição filosófica: uma antinomia entre pensamento e ação e a possibilidade de o sujeito atuar para se prejudicar.


Desta maneira com Lacan depreende-se que a passagem ao ato desvela a própria estrutura do ato, ou seja, para o psicanalista francês o ato suicida é o modelo do ato. Algo que não trabalha para seu bem, nem para o útil e sim para sua destruição. Segundo Miller (2014) tal chave de leitura já está presente em Freud visto que nele o suicídio está em conformidade com a pulsão de morte, ou seja, alguma coisa que habita o sujeito, que o corroí e ainda o destrói. O paradoxo aqui é que justamente o sujeito se sustenta em seu sintoma que ao mesmo tempo faz mal. Infere-se daí que todo ato propriamente dito visa o cerne do ser, ou seja, o gozo.


Aqui mais uma vez torna-se fundamental a diferenciação entre o ato e a ação. Historicamente a ação é o resultado de ponderamentos, de cálculos pela via do pensamento. Em psicanálise, o pensamento é o lugar da dúvida e desta forma inibidor da ação. O ato é de certa forma um rasgo no pensamento.


Em relação ao Outro, pode-se afirmar que o ato sempre manda uma mensagem de separação do Outro. Cabe aqui uma diferenciação entre acting out e passagem ao ato. O acting out faz apelo ao Outro, ou seja, ele necessita do Outro como seu espectador. Já a passagem ao ato é justamente esta separação abrupta do Outro. Podemos dizer também que a passagem ao ato trata-se de um não mais querer saber.


Por fim Miller (2014) afirma que o ato sempre tem o lugar de um dizer, ou seja, mesmo que em um ato exista uma dissociação entre ato e significante a posteriori ele pode ser recuperado em uma significação.


Temos então clinicamente um problema: como impedir um ato que não conseguimos prever? Jacques-Alain Miller (2014) afirma que para tentarmos impedir alguma coisa temos que primeiramente saber com o que estamos lidando. Muitas vezes o suicídio pode vir como solução da dúvida. A respeito do Outro, deve-se pensar se no suicídio trata-se de um apelo ao Outro ou uma separação ao Outro.


Lacadée (2011) afirma que a verdade em psicanálise é aquilo que não se diz, mas se sofre. Desta forma o suicídio pode ser pensado como uma tentativa de inscrição no laço social. A tarefa aqui é mostrar ao sujeito que é possível passar o sofrimento pela palavra e pelo semblante.


A respeito do suicídio Lacadée (2011) afirma que o sentido necessita também do Outro. Desta maneira o suicídio pode ser encarado como uma tentativa de verificar junto ao Outro qual o seu valor. E qual e a tarefa do analista? Segundo Lacadée (2011) é justamente decifrar qual gozo pode levar o sujeito a prejudicar-se ele mesmo e a romper com o Outro. Tem-se então duas ferramentas básicas para a direção da cura, a transferência e o inconsciente.


Referências bibliográficas:


Como a iniciativa privada reduziu os suicídios na Coréia do Sul. Disponível em http://www.ilisp.org/noticias/como-a-iniciativa-privada-reduziu-os-suicidios-na-coreia-do-sul/. Acesso em 11 de set. de 2016.

Coreia do Sul: a república do suicídio. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2015/09/18/coreia-do-sul-a-republica-do-suicidio.htm. Acesso em 11 de set. de 2016.

FREUD, S. Contribuições para uma discussão acerca do suicídio. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, Vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

______. Luto e Melancolia. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, Vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACADÉE, P. O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2011.

MILLER, J. A. Jacques Lacan: observações sobre seu conceito de passagem ao ato. In: Opção Lacaniana Online. Ano 5. Número 13. Março 2014. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_13/Passagem_ao_ato.pdf. Acesso em 11 de set. de 2016.

Para desestimular suicídio, empresas sul-coreanas fecham funcionários em caixões. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151214_coreiadosul_caixao_terapia_hb. Acesso em 11 de set. de 2016.

Suicídio é morte mais comum entre jovens sul-coreanos. Disponível em: http://veja.abril.com.br/mundo/suicidio-e-a-morte-mais-comum-entre-jovens-sul-coreanos/. Acesso em 11 de set. de 2016.

Suicídio-Coreia: o preço do “desenvolvimento”. Disponível em: http://www.ipub.ufrj.br/portal/ensino-e-pesquisa/ensino/residencia-medica/blog/item/585-suic%C3%ADdio-coreia-o-pre%C3%A7o-do-desenvolvimento. Acesso em 11 de set. 2016.

Suicídio na Coréia do Sul – Causas e Curas. Disponível em: http://www.koreapost.com.br/colunas/suicidio-na-coreia-causas-e-curas/. Acesso em 11 de set. 2016.

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