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A psicanálise além do Nome-do-Pai

Segundo Miller (2007-2008) Freud sempre tentou inscrever a psicanálise no discurso da ciência (mesmo que ao longo de sua prática encontrasse indícios de resistência a isto). Dentro deste contexto a ferramenta do diagnóstico era imprescindível; pegada emprestada do viés científico da psicopatologia psiquiátrica a tripartição neurose, psicose e perversão garantiram a Freud uma sintomatologia característica de cada grupo. Para o psicanalista de Viena a base desta diferenciação era a função simbólica do pai, o que mais tarde Lacan chamou de Nome-do-Pai. Como exemplo clássico na obra freudiana se tem Édipo. Para Lacan a teoria de Freud tinha como um dos pilares a metáfora paterna, ou seja, o significante do Nome-do-Pai deve atuar sobre o significante do Desejo-da-Mãe (BRODSKY, 2013). É esta manobra que permite que o filho dê uma significação a sua existência. Desta maneira, a partir da resposta a esta operação encontramos as três estruturas clínicas: na neurose tem-se o recalque, na perversão a denegação e na psicose a foraclusão.

Pois, ao lermos com atenção a obra freudiana obtemos indícios que esta operação não é tão eficaz. Como exemplo se tem a existência dos restos sintomáticos que aparecem ao fim de uma análise e que constituíam uma questão para Freud. Ainda, o texto de 1924 intitulado “A perda da realidade na neurose e na psicose” já demonstra como a diferenciação entre estas duas estruturas não é tão claro quanto possa parecer:


Tanto a neurose quanto a psicose são, pois, expressão de uma rebelião por parte do ID contra o mundo externo, de sua indisposição – ou, caso prefiram, de sua incapacidade – a adaptar-se às exigências da realidade [...] (FREUD, 1924, p.202-203).


Neste texto interessa a Freud como acontece não só a perda de realidade na neurose e na psicose, mas também quais são as formas compensatórias apresentadas em cada estrutura. Segundo Freud:

A distinção nítida entre neurose e psicose, contudo, é enfraquecida pela circunstância de que também na neurose não faltam tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra que esteja mais de acordo com os desejos do indivíduo. Isso é possibilitado pela existência de um mundo de fantasia, de um domínio que ficou separado do mundo externo real na época de introdução do princípio de realidade [...] (FREUD, 1924, p.208).


Agora, se a prática de Freud tinha certo acento na neurose e histeria (o caso da paranoia de Schreber não foi um caso atendido por Freud) Lacan tinha uma forte relação com a psicose, desde seus trabalhos acadêmicos iniciais até suas famosas apresentações de pacientes no hospital de Saint-Anne. Desta forma, afirma Brodsky (2013, p.10):


Será na medida em que Lacan introduz a prática com o psicótico na prática psicanalítica que a perspectiva muda, e de tal maneira que, no final de seu ensino, a neurose é para Lacan um caso especial de psicose [...].


Seguindo ainda com Brodsky (2013) pode-se fazer um divisão da clínica de Lacan em dois tipos: estruturalista e borromeana. A clínica estruturalista abrange o início da obra do psicanalista francês em que ele fez grande uso das teorias da linguagem. A segunda clínica, dita borromeana, abrange o período da década de 70 em que Lacan fazia uso da topologia dos nós.

A clínica dita estrutural corresponde ao momento em que Lacan realiza uma releitura da obra freudiana utilizando como ferramenta a linguística estrutural de Saussure e Jakobson. Tem-se então a metáfora paterna, ou seja, o significante do Nome-do-Pai atuando sobre o significante do Desejo-da-Mãe que permite à assunção do sujeito. É exatamente em relação a esta operação que gira as três estruturas clínicas: neurose, psicose, perversão. Quando esta operação acontece, temos o recalque, caracterizando a neurose. Porém existem casos em que o Nome-do-Pai é foracluído, ou seja, é expulso do simbólico para retornar no real. É o caso da psicose. Desta forma, na clínica estrutural de Lacan a psicose tem uma estrutura de déficit (Brodsky, 2013).

Já na segunda clínica de Lacan, a chamada borromeana, é a época em que Lacan abandona a noção de linguagem enquanto possível de domesticar o real. Para tanto, enquanto instrumento metodológico, na década de 70 ele inicia o uso da topologia, que tem como característica a relativização dos limites, ou seja, em uma figura topológica não se sabe o que é dentro e o que é fora. Afirma Brodsky (2013, p.33):


[...] há uma descontinuidade na clínica estrutural entre neurose e psicose que não encontramos na clínica borromeana, que é bem mais uma clínica de continuidades, onde não é fácil colocar alguém de um lado ou de outro.


Desta forma observa-se que neste momento o Nome-do-Pai perde sua exclusividade enquanto ferramenta de domesticação do gozo e também de diferenciação de estruturas clínicas. Segundo Vieira (2010, p.2): “[...] existem outros modos de seguir na existência que não o Nome-do-Pai ou sem déficit [...]”. É uma mudança que acarreta grandes consequências para a clínica psicanalítica. Pois, a partir deste acontecimento pode-se pensar que as estruturas clínicas, neurose, psicose e perversão são na verdade defesas contra o real (MILLER, 1996). Desta forma, se na clínica estrutural encontramos o Nome-do-Pai como possível regulador frente ao real, em seu último ensino Lacan indica que: “[...] em nenhum caso o pai simbólico é uma solução satisfatória diante do impossível de suportar.” (Miller, 1996, p.198). Com esta perda da “prioridade” do Nome-do-Pai Lacan cunha um novo termo, sinthoma, como aquilo que enoda os registros do simbólico, imaginário e real. O sinthoma passa a ser então aquilo que regula o gozo. Portanto, segundo Vieira (2010, p.5): “[...] Anuncia-se a possibilidade de um trabalho analítico mesmo quando não se pode conta com a bússola da falta e da culpa [...]”.


É dentro deste contexto teórico que Lacan escreve em uma carta em defesa a Universidade de Vincennes, a frase: “Todo mundo é louco, isto é delirante”. Temos então Lacan indo contra seus próprios ensinamentos. Esta frase já parece indicar de antemão que toda referência à normalidade e cura é de certa forma destruída (BROSKY, 2013). Ora, Lacan de certa forma chega ao ápice de um clínica além da norma edipiana colocando o Nome-do-Pai como apenas uma das maneiras de defesas contra o real. Segundo Brodsky (2013, p.34):


[...] aquilo que o Nome-do-Pai não consegue circunscrever é o que nos obriga a delirar o tempo todo, com nossos fantasmas, com nosso sintoma, com nossas crenças. É tudo aquilo que não conseguimos significantizar com o Nome-do-Pai [...].

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