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Resenha crítica do texto “Gays em análise?” de Jacques Alain Miller

Com a resenha deste texto pretendo iniciar uma sequência de estudos a respeito da temática da sexuação em psicanálise. Grosso modo pode-se dizer que sexuação envolve a maneira de cada sujeito gozar e é talvez o que mais se aproxima, em termos psicanalíticos, do conceito de gênero.


O psicanalista francês inicia seu texto propondo pensar o gay como um significante novo, como uma construção oriunda da própria luta do coletivo homossexual. Ora, para Miller (2006) esta construção é importante pois esta nova construção permite pensar a questão sexual fora da égide da perversão, como historicamente foi pensado pela psicanálise:


[...] Ao substituir o termo gay na cultura que o promoveu, creio que o ideal do gay é uma outra solução, e melhor, para o problema, sexual, ou para a condição humana [...] (MILLER, 2006, p.15)


O psicanalista avança nesta lógica e chega a questionar se:


[...] a incidência dos homossexuais tenha sido muito maior em relação à evolução recente da análise do que o percebemos até aqui e – por que não? – com respeito a elaboração de Lacan [...] (MILLER, 2006, p.16)


Para uma melhor compreensão desta problemática deve-se relembrar que na década de 70 Lacan cunhou seu famoso aforismo “não há relação sexual” indicando aí dois modos de gozo, o masculino e o feminino, que justamente por possuírem formas diversas de satisfação não são complementares. Segundo Miller a partir desta constatação abre-se caminho “[...] para se considerar a homossexualidade como uma invenção, uma construção [...]” (MILLER, 2006, p.17).


Miller (2016) aponta que a “questão homossexual” não é a mesma de 20 anos atrás e isto implica um esforço de atualização para os psicanalistas. Fica claro que este esforço não abrange apenas as questões do movimento gay e sim os novos sintomas da contemporaneidade:


[...] Erraríamos se congelássemos nossa clínica na eternidade da estrutura, enquanto o reconhecimento social, a demanda do Outro social, suas variações, as formas mutantes da censura social são outros tantos fatores que condicionam tanto a clínica quando a experiência analítica. Isto nos obriga a ser absolutamente contemporâneos [...] (MILLER, 2006, p.17).


É interessante como Miller (2016) demonstra a relação de tensão que a psicanálise possui com esta temática, pois ao mesmo tempo em que Freud pôde afirmar que a pulsão sexual era perversa polimorfa e desta forma a homossexualidade era nada mais que uma escolha objetal, também em sua obra existe um certo ideal de cura, uma fantasia de desenvolvimento e maturação tido como normais (MILLER, 2006).


O psicanalista demonstra que os primeiros anos do ensino de Lacan são a expressão máxima desta perspectiva:


[...] a norma tornou-se a lei, a metáfora paterna tornou-se a lei, a estrutura tornou-se a lei. A escolha do objeto homossexual apareceu como uma falsa saída, uma saída má do Édipo. Era reescrever, em termos de lei de estrutura, o que, para os analistas, era a norma do desenvolvimento [...] (MILLER, 2006, p.18-19).


Miller (2006) aponta que os estudos iniciais de Lacan traz a marca de uma crença na possibilidade da cura, seja dos homossexuais, seja dos psicóticos. Afirma ainda que justamente por ter se disposto tal missão hercúlea que percebeu a impossibilidade e o fracasso inerente a mesma:


[...] Imaginemos Lacan enfrentando a dificuldade do real que encontra, como analista, na homossexualidade, e reconfigurando, em seguida, a psicanálise: passagem de uma clínica do progresso para uma clínica da posição, ou seja, disjunção da estrutura e da lei. (MILLER, 2006, p.19).


Ou seja, diante do impossível Lacan inicia um processo de reviravolta em sua clínica, abandonando a ideia freudiana de maturação desenvolvimentista para propor uma clínica orientada para o gozo singular dos sujeitos. Pode-se inclusive seguir as indicações de Miller (2016) e esquematizar três momentos no ensino de Lacan: o primeiro momento é caracterizado por uma clínica da libido, trazendo a marca de um caráter desenvolvimentista; esta clínica é abandonada para a assunção de uma clínica do desejo, sendo este marcado necessariamente pela errância e ausência de lei. Pois, ainda assim esta “clínica do desejo” é devedora da norma e do Nome-do-Pai. È justamente devido a esta insuficiência que se chega ao terceiro momento do ensino de Lacan, ou seja, a uma clínica do gozo.


Este último momento da clínica de Lacan tem como um de seus marcos o chiste com a palavra perversão, caracterizando-a como apenas uma versão do pai (pére-version):


[...] O Édipo clássico era o que opúnhamos à perversão; o perverso era aquele que não havia acedido à norma edipiana. O “witz” de Lacan foi feito para mostrar que o Édipo não passava de uma perversão, que não havia norma, ou que a dita norma era da mesma natureza que a perversão [...] O “Nome-do-Pai” não é a lei, não passa de um instrumento útil. Dizendo de outra maneira, é a passagem da idade dogmática da psicanálise a sua idade pragmática (MILLER, 2006, p.20-21).


Miller (2006) finaliza seu texto pontuando um ponto de dissimetria entre a psicanálise e o movimento gay. Este, mesmo por conta de suas lutas por direitos e reconhecimento, funciona por uma prática de identificação, ou seja, grupos que reivindicam seu lugar. Aqui, não se trata de refutar tal perspectiva mas apresentar uma outra possibilidade de tratamento, ou seja, uma que não faz usa de um significante-mestre (sou gay!) como orientador.


Em contrapartida, Miller (2016) indica como a crítica que o discurso queer profere ao movimento gay traz similitudes com a psicanálise:


[...] Com efeito, o queer objeta ao gay que o gay fica nos limites do Édipo, nos limites do regime do significante-mestre, enquanto o queer sublinha que há homossexualidades onde o gozo é estar em infração [...] O queer ressalta que, no fundo, o gozo é rebelde a toda universalização, à lei, não é um Soberano Bem. (MILLER, 2006, p. 21).


E finaliza:


[...] o queer sublinha é que há uma inquietante estranheza do homossexual com relação a si mesmo, e que este apotropaico Je suis gay, que é destinado a distanciar a angústia do desejo do Outro, tem um preço, que é o preço da inautenticidade [...] Talvez seja necessário objetar aos militantes gays que o gay cede a seu desejo homossexual. Cede a seu desejo porque o modela sobre o que imagina ser o desejo hétero. Procura tornar legal o desejo homo. Outros homossexuais objetam-lhe que a lição mais profunda da homossexualidade é a de pôr em evidência o que há no desejo, não de ilegítimo, mas de ilegal. [...] (MILLER, 2006, p.22)




Referências bibliográficas:


MILLER, J.A. Gays em análise? Opção Lacaniana nº47. Dezembro 2006.

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