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É possível falar de uma ética da psicanálise?

Pensar o tema da ética e a psicanálise é problemático, pois esta não possui um texto em que trata especificamente do tema, tal como Aristóteles tem sua ética. Em contrapartida pode-se observar que cada vez mais na atualidade o saber da psicanálise é convocado para tentar pensar as questões da sociedade. Assim, caso se fale de uma ética na contemporaneidade esta terá a contribuição da psicanálise. Portanto, trata-se de pensar como a psicanálise ajuda a pensar novos vetores em nossa época.


Podemos dizer com certeza que hoje existe uma crise ética no mundo. Podemos até questionar se existe mesmo uma ética no mundo. Esta crise ética produz efeitos sociais alarmantes. Historicamente podemos falar de duas vertentes da crise ética, uma refere-se ao reconhecimento da lei e outra a desmoralização do código. Observamos então na contemporaneidade certo imperativo ao gozo ao consumo paralelamente a elevação ao mundo das imagens. Desta forma se a lei vai perdendo sua função enquanto aquela que estabelecia uma renúncia ao gozo pode-se afirmar que o mercado atua de forma oposta em que não se trata de renuncia e sim apelo ao próprio gozo. Ilusão visto que isto não é possível (o gozo completo). Assim, o gozo muda de estatuto, de um mal a ser evitado ele passa a ser uma ideal: “[...] O apelo ao gozo produz mais angústia do que o gozo propriamente dito, mais violência (pois é com violência que reagimos à violência dos imperativos) do que fruição [...]” (KEHL, 2002, p.15).


Pode-se falar da segunda vertente da crise ética referindo-se a crise do código, código que foi imposto pelo ideário burguês. Este basicamente objetivava submeter os outros a este código. A psicanálise rompe com este ideário burguês ao quebrar o silêncio imposto por ele. É importante lembrar que esta quebra do código se deu pelas próprias sociedades capitalistas e individualistas.


As condições históricas para o aparecimento da psicanálise.


É consenso que a psicanálise surge, e só poderia ter surgido, com o advento da modernidade. Esta época é marcada pelo desamparo do homem e consequentemente um apelo a uma nova ética. Pode-se então entender o sujeito moderno como centrado no eu e carente de ser.


A modernidade foi uma época marcada na confiança na razão. Como exemplos capitais temos Descartes com seu cogito e Kant com seu imperativo categórico. Habermas mostra que a modernidade, com seu rompimento com o passado, implica necessariamente em buscar em si mesmo a normatividade. Temos os acontecimentos do surgimento da noção de indivíduo, da noção de propriedade, do rompimento com a sociedade medieval e sua noção de comunidade, etc. Assim, a razão será por muito tempo esta base dos tempos modernos. Acontece que aos poucos vai ficando mais claro que a razão não possui estas condições de normatividade. É aí que a psicanálise se insere, ou seja, em uma época em que houve um deslocamento do homem com sua relação com a palavra e com os semelhantes. É importante lembrar que na divisão do sujeito em Freud não se tem o conflito entre consciência moral contra dever (tal como em Kant), mas sim entre o eu e o outro lugar. O homem é marcado por outro tipo de conflito. A questão do conflito é importante, pois vivemos tempos de culto à normalidade.


É interessante notar que o sujeito da psicanálise é o sujeito civilizado entendido que a civilização é um longo processo de individualização inclusive do homem consigo próprio. Desta maneira, o inconsciente como discurso do Outro, tese lacaniana, só tem sentido na modernidade. Assim, o individualismo moderno se funda no esquecimento das dimensões coletivas.


O próprio cogito pode ser entendido como perda, sintoma da perda de referências coletivas, da origem e da tradição. Uma leitura possível que se tem do cogito: sou quando penso, ou seja, sou quando me insiro na linguagem. Desta forma o homem moderno padece de referências para a linguagem visto que nada funda a verdade da linguagem a não ser seu uso. Desta maneira a modernidade funda o saber na experiência, com um eu que se pretende soberano.


Temos então certo paradoxo na modernidade em que não temos mais o poder da tradição (que de alguma maneira oferecia alguma estabilidade e consistência ao ser), mas em contrapartida a modernidade é libertadora se suportamos viver em falta com a verdade: “Quando os sentidos dados pela tradição, pelas religiões, pela transmissão familiar, deixam de... fazer sentido, o que podemos colocar em seu lugar? O que conferiria sentido a nossas vidas? [...]” (KEHL, 2002, p. 9).


A psicanálise e uma nova ética


Segundo Kehl é a partir de Totem e Tabu que surge a dimensão ética na psicanálise. Daí depreende-se a noção de tabu enquanto formação social e não neurose. Assim, a formação social libera o sujeito de dar uma resposta neurótica (culpa) a seus problemas. A passagem das culturas comunitárias para ao individualismo é o que Freud tenta demonstrar em obras como Totem e Tabu. Desta forma a psicanálise lida com o indivíduo neurótico e com a sua condição de sujeito separada da coletividade protetora.


De imediato é importante fazer um diferenciação que muitas vezes gera confusão. A noção de inconsciente não implica em uma leitura de sociedade individualista e narcisista. Estas são dimensões do eu. Se entendermos o inconsciente enquanto produção de sentido, então se percebe que o sentido também é produzido coletivamente (cultura).


Desta forma, existe um compromisso do sujeito com seu desejo, ao aceitar a falta e o conflito inerentes a ele, isto é uma posição ética da psicanálise e que pode ter consequências éticas. Esta responsabilidade é a contrapartida contra a culpa neurótica. É por isto que Lacan questiona no Seminário 7: Agiste conforme o desejo que te habita? Ou seja, o sujeito é responsável pelo seu inconsciente e consequentemente, por seu desejo.


Pode-se então definir como proposta ética da psicanálise: ao contrário da compulsão neurótica de tudo conhecer e explicar, o estilo: singularidade da relação do sujeito com seu desejo. Isto implica dizer em que deve-se aceitar a existência de um conflito em que o mal nunca é exterior àquele que sofre. Ou seja, aquele que sofre não é mal (não é uma moral). Neurótico é então aquele que não quer saber justamente aquilo que o eu não sabe.


Pensar a ética da contemporaneidade desta maneira traça uma fundamental diferença com éticas anteriores, tais como a aristotélica, que caracterizava o conflito enquanto produtor de infelicidade e a ética kantiana, que com sua lei moral é totalmente impessoal, estando mais ao lado de um imperativo do superego.


Assim a psicanálise coloca uma questão ética: como articular alienação e responsabilidade? O homem na modernidade é vazio de ser, logo a psicanálise não é apaziguadora. Pois a psicanálise mantém em seu cerne a noção de conflito, ou seja, sujeito dividido, alienado em sua inevitável dependência do Outro e da linguagem, movido pelo desejo. Em contrapartida a noção de inconsciente não implica em um sujeito solipsista. A afirmação lacaniana de que o inconsciente é estruturado como linguagem já indica que o inconsciente tem estreita relação com este outro da linguagem. Ou seja, somos agentes do campo social e produtores de linguagem.


Portanto, em uma época em que qualquer comportamento é tido como um desvio do eu passivo de conserto por via de terapias comportamentais e/ou medicamentosas bem como uma sociedade dominada pelo consumo que oferece aos sujeitos cada vez mais objetos que fazem semblante de objetos de gozo sem limites e a que todos tem direito, a psicanálise mostra a existência de um sujeito dividido e que é justamente esta parte não conhecida do sujeito que governa suas ações. A proposta da psicanálise é pensar um sujeito que possa ser responsável com seu desejo implica um sujeito que questiona o imperativo mortal de seu gozo bem como a responsabilidade de suas ações, seja em relação ao semelhante seja no questionamento de verdades colocadas como dadas.




* Este texto tem como base principal o livro de Maria Rita Kehl sobre Ética e Psicanálise bem como o Seminário 7 de Lacan.



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