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“O cartel como aposta política de Lacan” *

* Texto apresentado no VI Congresso Internacional de Filosofia da Psicanálise - 2015



O título de minha apresentação é resultado do trabalho que realizo hoje como participante da Comissão de Cartéis da Escola Brasileira de Psicanálise – Delegação Espírito Santo. A tarefa desta comissão é promover e instigar produções e discussões a respeito do cartel e ainda fomentar a criação dos mesmos na Escola. Falo também como alguém que, tendo participado de alguns cartéis, se viu implicado em um dispositivo que permite uma relação única e diferenciada com saber da psicanálise.


Desta forma, posso dizer que desde 2009 o tema do cartel está presente em meu percurso na psicanálise. Primeiramente como dispositivo fundamental de trabalho da Escola de Lacan e posteriormente (mas não excluindo o primeiro fator) com uma questão: por qual motivo Lacan insiste tanto no Cartel? Desde a primeira formulação sobre este dispositivo até seus últimos escritos ele martela neste tema (mesmo admitindo, em 1975, que até agora não havia existido cartéis).


Parece que a chave de resposta da minha questão esteja em um comentário do filósofo francês Alain Badiou.


Uma breve história do cartel – Três momentos


Em 1964 Lacan funda a Escola Francesa de Psicanálise. Em seu “Ato de fundação” ele fala que esta se relaciona a um trabalho e que o dispositivo de execução do mesmo é o cartel. Nota-se aqui já uma articulação muito importante, que é a proximidade do cartel com o trabalho. Lacan então mostra em que consiste o cartel: um pequeno grupo, três no mínimo e cinco no máximo, sendo quatro a justa medida, mais-um (responsável pela seleção, discussão e encaminhamento do trabalho de cada um). Lacan afirma que após um tempo de trabalho este cartel se dissolve, realizando uma permuta entre os membros. Aqui se encontra outro ponto fundamental em relação ao cartel: sua relação com o tempo, ou seja, existe um fim que já é antecipado.


Lacan estava atento ao estudos realizados com grupos, não só os já famosos estudos freudianos como também os realizados por Bion, por exemplo. Para Lacan, o grupo funcionava pela identificação imaginária e isto era um empecilho à realização de qualquer tipo de trabalho já que esta identificação permitia um efeito de cola nos grupos que invibializava qualquer tipo de movimento ao saber. Assim, a configuração do cartel, ou seja, seu número reduzido, a presença do mais-um, tinha como objetivo tentar reduzir ao máximo os efeitos imaginários do grupo.


Dentro desta perspectiva, o mais-um é uma peça fundamental, pois, como diz Jacques Alain-Miller, aquele é o responsável por fazer buracos na cabeça dos cartelizantes. Exercer esta atividade implica necessariamente em deixar aparecer o real inerente a cada grupo, ou seja, o sem-sentido, os tropeços de cada sujeito e ainda a relação de cada um com o trabalho que se propôs a fazer.


Posteriormente, em um encontro com psicanalistas de sua Escola, já no ano de 1975 - portanto Lacan já estava envolvido no estudo dos nós borromeanos - Lacan convoca uma reunião extraordinária para falar a respeito do cartel. Nesta reunião ele funciona como o mais-um por excelência ao colocar questões para os participantes e os provocar a um trabalho. Ao fim, Lacan evidencia a importância do cartel para sua Escola e coloca ainda que ninguém havia atravessado uma experiência de cartelizante.


Esta conferência chamou bastante minha atenção, pois, como dito anteriormente, Lacan encontrava-se em uma fase avançada de seu ensino, em que ele havia inclusive revisado vários conceitos que o havia consagrado. Porém, o cartel ele mantêm como dispositivo fundamental de trabalho de sua Escola. Por quê?


O terceiro momento refere-se a quando Lacan, em 1980, ao fundar a Escola da Causa, retoma o cartel, ou como ele mesmo diz:


[...] sem demora dou partida à Causa Freudiana – e restauro, em seu favor, o órgão de base retomado da fundação da Escola – ou seja, o cartel, cuja experiência feita, eu aprimoro a formalização [...] (LACAN, 2010, p. 14).


É neste texto que se encontra, passo a passo, a normatização mínima – e mais clara, do que seria cartel e seu funcionamento. É importante acentuar o ano desta retomada: trata-se de 1980 e Lacan está retomando a questão do trabalho em sua Escola bem como a transmissão do saber da psicanálise. Por fim, em D´ecolage Lacan deixa claro em sua enunciação que não estava interessado em um grande número de seguidores de doutrina e sim trabalhadores decididos.


Uma possível resposta


A resposta a minha questão, ou seja, o porquê da insistência de Lacan com o cartel, talvez se encontre em uma formulação do filósofo francês Alain Badiou. Este em uma conferência realizada no Brasil intitulada “Lacan e o real”, afirma:


“[...] O filósofo tapa o buraco da política. Ele faz crer que a ação coletiva pode ter um sentido sólido, ele sonha indefinidamente com uma política racional. Lacan tem uma outra teoria do grupo. A tese lacaniana final é que a única pertinência de um grupo é uma breve sequência medida ou mensurada por um trabalho explícito. Nenhum coletivo, nenhum grupo tem uma legitimidade intrínseca; nem mesmo o projeto de fazer alguma coisa legitima o grupo. É preciso distinguir o projeto-de-fazer e o próprio fazer [...] A tese de Lacan é, nesse sentido, que não há política real, pois que o único real de um coletivo é um buraco entre duas ações dissemelhantes [...]” (BADIOU, 1999, p.68-69).


Nesta passagem o filósofo evidencia o que foi falado anteriormente, ou seja, um grupo só tem sentido se relacionar-se a um trabalho. Ainda, um cartel deve necessariamente levar em consideração o real. As formações imaginárias de um grupo visam justamente tamponar este real e seus efeitos. O cartel justamente propõe trabalhar também com estes efeitos.


Partindo então do que foi colocado pelo filósofo francês, será que é possível afirmar que a insistência de Lacan com o cartel não o envolve apenas como dispositivo fundamental para sua Escola e sim como a única possibilidade de trabalho de um grupo? Ou ainda, que grupo para Lacan só tinha pertinência se fosse ajustado nos moldes de um cartel, ou seja, um pequeno grupo se reúne, realiza um trabalho e depois se dissolve?


Caminhando nesta direção, é extremamente interessante um texto pouco conhecido de Lacan intitulado Senhor A. (dirigido ao Althusser) em que o psicanalista fala, entre outras coisas, sobre o cartel. Em especial, uma passagem que muito chama a atenção, afirma: “[...] Vamos! Reúnam-se vários, juntem-se o tempo necessário para fazer alguma coisa e em seguida dissolvam-se para fazer outra coisa... [...]” (LACAN, 1980).


Ora, neste momento de meu estudo parece-me que não é forçoso afirmar que a insistência de Lacan com o cartel não é apenas por este ser um dos órgãos base da sua Escola e sim é de certa forma a resposta que Lacan dá a qualquer tentativa de trabalho em grupo, extrapolando assim os próprios limites da sua Escola.


Referências:


BADIOU, A. Conferências de Alain Badiou no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica,


1999.


LACAN, J. D`Écolage. Manual de Cartéis. Belo Horizonte: Ed. Scriptum, 2010.


___________. El Senor A. Disponível em: http://www.wapol.org/es/las_escuelas/TemplateArticulo.asp?intTipoPagina=4&intEdicion=1&intIdiomaPublicacion=1&intArticulo=160&intIdiomaArticulo=1&intPublicacion=10


___________. O Seminário livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012.


___________. O seminário livro 14: A lógica da fantasia. Inédito


___________. O Seminário livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Editor, 2008.


___________. O seminário livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.


Miller, J. Lacan e a política. Opção Lacaniana nº40. Rio de Janeiro, 2004.


___________. Intuições Milanesas I. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intui%C3%A7%C3%B5es_milanesas.pdf


__________. Intuições milanesas II. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_6/Intuicoes_Milanesas_II.pdf



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