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Eu, a verdade, falo?

*Apresentação de trabalho - Noite de Cartéis - EBP-ES - 28/08/2013

“[...] Cabe a ele encontrar a verdade. Mas de que modo? Incerteza grave, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o pesquisador, é ao mesmo tempo a região obscura que deve pesquisar e onde toda a sua bagagem não lhe servirá para nada. [...]” (Proust, 2010, p.65)


Recentemente li em uma rede social uma crítica a uma suposta noção de verdade presente na psicanálise, em que a verdade seria algo fixo, imutável, relacionado de certa forma a uma “substância” do sujeito. Pois bem, creio que o meu grande interesse neste tema se dá justamente porque acho fascinante como Lacan utiliza um termo tão caro a filosofia, usa-o com algumas influências – Heidegger, por exemplo, mas principalmente traz o conceito para a clínica e o faz de uma maneira singular.


Portanto, estudar o tema da verdade neste cartel é uma maneira que me permite, de certa forma, tentar acompanhar às modificações do conceito ao longo da obra lacaniana. Um dos parâmetros que segui para o estudo deste tema foi uma indicação de Miller em que o Seminário “de um Outro ao outro” é o “ateliê” dos quatro discursos. Assim, procurei me ater ao fato de que Lacan reserva um lugar para a verdade nestes discursos. Desta forma, este é meu fio guia.


A primeira vez que Lacan proferiu “Eu, a verdade, falo” foi em 1955 em uma conferência em Viena, dentro do contexto do retorno ao sentido de Freud. O objetivo era retomar os fundamentos freudianos em uma época em que a psicanálise concentrava-se na análise do eu e de suas resistências. Portanto, resgatar o entendimento e o uso que Freud fazia da verdade era necessário: “[...] a descoberta de Freud questiona a verdade, não há ninguém que não seja pessoalmente afetado pela verdade [...]” (Lacan, 1998, p.406). A famosa prosopopeia da verdade representa um tempo em que o Outro garantia a verdade da interpretação. Desta maneira, o que Lacan buscava demonstrar era o caráter interpretativo da verdade, ou seja, ela era portadora de uma mensagem: “[...] a verdade que fala, o melhor para apreendê-lo bem é tomá-lo ao pé da letra [...]” (Lacan, 1998,p.412). Em uma passagem do texto de 1955, Lacan afirma que no “Eu, a verdade, falo”, para apreendermos o que este [eu] fala não devemos nos deter neste [eu] e sim nas “[...] arestas do falar [...]” (Lacan, 1998, p. 414). Posteriormente veremos como ele muda de posição em relação a este [eu].


Passados treze anos e ainda sofrendo os efeitos dos acontecimentos de 1968 Lacan inicia seu décimo sexto seminário questionando este Outro que ele mesmo conceituou com esmero. Ora, repensar o estatuto do Outro implica necessariamente repensar o lugar da verdade, visto que ela já não tem mais neste Outro sua garantia de certeza.


Para tanto, Lacan retoma a famosa prosopopeia da verdade: “[...] Para dar uma imagem do aparecimento da verdade na experiência analítica, dei-lhe a ênfase de um Eu falo mítico. [...]” (LACAN, 2008, p.24). O Eu falo é o ideal quando se pensa na experiência analítica. Ideal em uma época em que o Outro era definido como lugar da verdade e que era responsável pela consistência do discurso do sujeito. Porém, segundo Lacan, a verdade assim enunciada fica retida justamente entre os dois registros que dão o título de seu curso.


De um Outro ao outro: estes são os limites em que a verdade está suspensa. Ou seja, visto que a consistência da verdade já não pode ser buscada no Outro, seu lugar passa a ser justamente na função do objeto a. Parece-me que esta posição anunciada por Lacan já havia sido apresentada dois anos antes em seu texto “A Ciência e a verdade” em que ele afirma que o lugar da verdade é um lugar vazado e que o objeto da psicanálise é a função de a.


Penso que na alusão que Lacan faz do quadro expressionista “O grito” se encontram os primeiros indícios de que sua nova versão da verdade leva em conta o gozo. Entra-se desta maneira na dimensão do que não pode ser dito, do que não é articulado. Inicia-se um movimento em que a verdade não é dita pelo sujeito e sim suportada por ele: “[...] Mas, não é isso que grita aquele que é sofrimento, por ser essa verdade. [...]” (LACAN, 2008, p.24). Nada pode responder ao grito da verdade, porém, paradoxalmente, o sujeito encontra no objeto a seu equivalente que permitirá constituir: ‘[...] a coerência do sujeito enquanto eu.” (Lacan, p.24)


Esta menção ao eu não é sem consequências. Lacan retoma “Eu, a verdade, falo” justamente para repensá-lo. Para tanto, é a passagem bíblica do Antigo Testamento, o encontro de Moisés com a Sarça Ardente que servirá de mote. Autorizando-se como tradutor, Lacan afirma que a melhor versão para a fala da Sarça é: “Eu sou aquilo que eu é”. Para ele, trata-se de tentar definir qual o estatuto deste Eu. Desta maneira, ele situa dois campos-limite: um que se relaciona com o campo do fato, ou seja, em que o sujeito é determinado pelo significante. O Outro campo é o que se relaciona ao Eu.


Lacan inicia sua explanação afirmando que esta verdade que diz Eu permanece oculta, aparecendo de forma esporádica nos intervalos do discurso. Ele chega a firmar que este Eu é propriamente o fundo da verdade. Portanto: “[...] O que será mostrado, o que esperamos, o que sabemos claramente, é que esse EU é sempre impronunciável em toda verdade [...]” (LACAN, p.79).


A maneira que Lacan aborda este Eu provocou várias discussões no Cartel. No meu caso a dificuldade se deu pois eu insistia em tentar compreender a passagem com base na dicotomia entre o Eu (moi) e o Eu (je). Porém, Lacan em nenhum momento fala em Eu (moi), trata-se do Eu (je) e que é impronunciável. Em um primeiro momento pareceu-me contraditório porém ao longo das discussões cheguei a “conclusão” que o que Lacan quer evidenciar neste Eu é a parcela de gozo, de real. Não há mais a divisão presente no Seminário da Ética, em que Das Ding só é acessível pela transgressão. Aqui, parece-me que o gozo está incrustado no Eu. Posteriormente, deparei-me com um texto de Miller, que afirma:


“O que se busca nos termos do início do Seminário [...] é uma definição mais ampla do sujeito, uma definição que incluiria também o gozo, ao passo que o sujeito do significante não o incluiu de modo nenhum. Vemos aqui aparecer o que conduzirá Lacan a falar do falasser, sendo o Eu, nesse Seminário, um esboço do falasser [....]” (Miller, p.15).


Ainda seguindo as indicações de Miller um dos pontos principais deste Seminário é o embate entre o Eu impronunciável e o Outro inconsistente. Assim, penso ser possível dizer também: “Eu é aquilo que a verdade não fala”.


Para finalizar, ao menos duas questões já estão colocadas:


a) o Eu impronunciável é uma consequência do Outro inconsistente?


b) Neste embate entre o Eu impronunciável e o Outro inconsistente, qual a função da fantasia?



Referências bibliográficas


LACAN, J. O Seminário livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.




________________________. A ciência e a verdade. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.




________________________. A coisa freudiana. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.




Miller, J. Opção Lacaniana nº48. Uma leitura do Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro, 2007.


Miller, J. Opção Lacaniana nº49. Uma leitura do Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro, 2007.


Proust, M. No caminho de Swann. São Paulo: Abril, 2010.







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