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O florescer da adolescência

Para a ciência a adolescência é caracterizada por uma etapa intermediária entre a infância e a fase adulta, marcada por diversas transformações corporais, hormonais e até mesmo comportamentais. A organização mundial de saúde considera que esta etapa acontece entre os 10 e os 20 anos. No senso comum, a adolescência é falada como o período da “aborrecência”. Já a psicanálise pensa a adolescência como um processo de transição, na qual ocorre mudanças marcadas pela dificuldade que o sujeito encontra em continuar se situando no discurso familiar que até então o dava uma ideia de si mesmo. Ele começa a ter desejos e pensamentos que se diferenciam daquelas expectativas desenvolvidas por seus pais.


Nesse sentido, é importante distinguir a puberdade da adolescência. Enquanto a puberdade é marcada por transformações físicas nos órgãos sexuais, que ocorrerá em todos os sujeitos, de modo programado, a adolescência provém dos efeitos decorrentes da puberdade e provocará uma mudança no plano da subjetividade. Cada jovem atravessa esse momento de modo singular, e terá que encontrar uma maneira de lidar com estas transformações, construindo uma nova resposta diante do furo que a sexualidade faz no real. (Santiago, 2016)


Pelo fato das alterações que ocorrem no corpo serem experimentadas de forma singular, nem todos terão tranquilidade neste processo, e isto produz uma reviravolta na posição do sujeito. Surge uma nova apreensão imaginária do seu corpo, e também uma retomada de posição diante da palavra. (Silva, 2016)


Neste momento, entra em questão uma dimensão do ato, que implica uma decisão, uma tentativa de fazer surgir seu próprio ser. O ato seria a saída para o impasse da relação com o Outro (no caso, a família), daquilo que é impossível de dizer e que leva ao sentimento de exílio. É o tempo de se desligar da autorização dos pais e se pronunciar e se responsabilizar pelos seus atos diante do Outro. (LACADÉE, 2011)


Se inicialmente é do encontro com o Outro que o sujeito irá consentir em entrar em uma língua comum, no momento da adolescência, ele irá tomar uma posição na língua, sua própria posição e que em algumas vezes ocorrerá de uma forma desrespeitosa e incômoda para o Outro. Não é à toa que serão chamados por muitos de rebeldes, vândalos entre outros adjetivos. É importante deslocar os insultos e as provocações dos adolescentes da pessoa insultada, pois na verdade, o que ele visa é seu próprio ser de sujeito que na maioria das vezes não consegue trazer em palavras. Algo de uma novidade desperta no adolescente, no seu corpo e no seu pensamento, e se ele não consegue uma forma de dizer, mesmo porque nem ele entende, ou ainda pensa que não pode dizer ao outro, ele será então desrespeitoso e provocante numa tentativa de obter o reconhecimento de que há algo de novo nele.


Freud (1905), no seu texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, aponta que a puberdade é marcada por mudanças que levarão a vida sexual infantil a sua configuração normal definitiva. Se antes a pulsão sexual predominante era auto-erótica (seio, fezes), agora ela irá encontrar um objeto sexual. Geralmente a mãe, por ser a pessoa que dá toda a assistência inicial necessária à criança, irá despertar nela a pulsão sexual preparando-a para o futuro. As pulsões terão grande importância para toda a vida do sujeito, até mesmo para obter as realizações éticas e psíquicas futuras. Toda a ternura que a mãe transmite para a criança quando pequena, irá servir ao seu desenvolvimento e auxiliará na sua vida futura. É claro que a falta ou o excesso da ternura também trarão consequências para a vida adulta.


Com a puberdade, portanto, a escolha de objeto é reatualizada, ou seja, a escolha será feita de acordo com aquilo que a criança pode vivenciar quando muito pequena, o objeto já foi encontrado anteriormente, agora ele será reencontrado e transferido para uma outra pessoa, não mais aquelas do seu meio familiar.


Lacadeé (2011) aponta que a adolescência deveria ser a época das descobertas e do florescer, mas é também muito marcada por conflitos. Os jovens muitas vezes se envolvem em manifestações, violências urbanas e anárquicas em uma tentativa de se fazer existir. Isso ocorre quando o adolescente não consegue ou não soube encontrar no discurso uma maneira de refrear seu gozo, ou não conseguiu encontrar uma outra maneira de saber fazer algo com isto.


No momento político que vivemos tem sido comum encontrar pessoas muito jovens engajadas politicamente (exemplo: as ocupações que aconteceram em escolas São Paulo por conta da CPI da merenda e ainda porque o governo queria fechar algumas escolas). Esses adolescentes muitas vezes precisam ter posicionamentos mais radicais para serem notados e ouvidos, mesmo assim não conseguem, pois geralmente o próprio estado vão vê-los simplesmente como vândalos, uma escória, um resto que precisa ser eliminado da sociedade. Não é à toa também que os enfrentamentos policiais têm sido tão violentos, até mesmo nas manifestações que estão acontecido nos últimos dias contra o governo ilegítimo.


É assim, que este momento elucida a dor de existir para os jovens. Por vezes eles não conseguem inscrever seu ser, em outras vezes não sabem nem como e nem porquê nasceram. E assim, não conseguem entrar em uma história simbólica capaz de lhes dar uma imagem ou um valor de si próprios.


Miller (2015) aponta para uma tendência que se tem nesta época de se isolar os adolescentes, os distanciando dos adultos numa cultura própria a eles, suscetíveis à moda, à entusiasmo, às tendências. Os objetos assim são múltiplos e permitem uma indecisão infinita, não preciso escolher apenas um, há um adiamento das decisões para o mais tarde possível. Posso fazer parte de um determinado grupo hoje, amanhã farei parte de outro, onde encontrarei outro objeto de satisfação. Deste modo, ocorre um distanciamento dos adultos com relação a eles e uma tendência à padronização, como se todos os adolescentes que pertencem a determinado grupo fossem iguais.


Isso modifica também a relação com o próprio saber. De acordo com Miller (2015), o saber hoje está no bolso, não é mais necessário busca-lo no campo do Outro. Se antes numa pesquisa de escola precisávamos no mínimo recorrer à “Barsa”, hoje basta digitar o tema no Google que tudo estará à disposição.


Com a mudança de acesso ao saber, o adolescente questiona a utilidade da escola e do professor. Não é mais necessária a presença de um adulto para mediar a aquisição do saber, basta apenas ter em mãos um celular ou qualquer outro dispositivo que permita o acesso ao mundo virtual. (Santiago, 2016)Portanto, eles dispensam a tradição de um mestre, “[...] não é mais preciso seduzir, ser obediente ou ceder às exigências do Outro”. (SANTIAGO, 2016, p.3)


Freud em 1914 fazia algumas reflexões sobre a importância dos professores na formação mais do os próprios conteúdos ensinados, mas se hoje há uma inversão nisto, como esperar do adolescente um desejo pelo saber? Ao contrário a adolescência tem sido marcada por vazio de saber. (SANTIAGO, 2016)


Não é difícil notar também o declínio do pai na sociedade moderna, que falando em termos práticos não é necessário nem mesmo a presença dele para se fazer um filho hoje em dia. Com o discurso da ciência é possível manipular a procriação e transmitir o saber via os gadgets de comunicação. (MILLER, 2015)


Contudo, nem as ficções jurídicas, nem as ficções científicas poderão dar conta do ponto de real que constitui a origem subjetiva de cada um: “[...] a má formação do desejo do qual ele provém”. (LAURENT, 2011, p.32)


Isso se refere ao fracasso entre os desejos que lançam a criança no mundo, trata-se do fracasso do encontro entre os sexos e do desejo da criança. Lacan irá se utilizar do termo Sinthoma, para se referir ao que há de mais singular em cada indivíduo. De acordo com Miller (2011, p.88):


O singular, como tal, não parece com nada: ele ex-siste à semelhança, ou seja, ele está fora do que é comum. A linguagem, por sua vez, diz apenas o que é comum, exceto o nome próprio – sem que o próprio do nome seja uma garantia de singularidade.


Isso causa grandes efeitos de desorientação não só nos adolescentes como também nos próprios pais que não estão mais sabendo o que fazer. Na ausência destas funções (do pai e da mãe), os objetos de gozo que são cada vez mais acessíveis e diversos se tornam as novas bússolas para as crianças e adolescentes. (LACADÉE, 2014)


Numa tentativa de recuperar o gozo perdido, os adolescentes ficam aprisionados aos aparelhos e dispositivos eletrônicos (celulares, tablets), mas de acordo com Lacadeé (2014), isto é apenas uma ilusão, pois ao contrário de se ter o gozo, é o objeto que goza da criança moderna. Surge um estilo de vida em que o gozo prevalece em detrimento do sintoma como formação do inconsciente.


Não é raro encontrar grupos de adolescentes em que todos estão ao mesmo tempo mexendo em seus smathphones. As queixas na clínica a respeito de déficit de atenção tornaram-se quase uma epidemia, e muitas vezes se relacionam apenas a um desinteresse pelos estudos, uma mudança com relação ao desejo de saber.


Além disso, esse período é muito caracterizado pelos efeitos que a tentativa de encontro sexual causa no sujeito. Vivemos em um momento em que está muito forte a desorientação sexual, os adolescentes têm uma facilidade muito grande para mudar de posição sexual, não importa mais qual o parceiro (se é homem ou se é mulher), tal separação (homem/mulher) não serve mais para regular o gozo sexual. Assim, eles vivem em busca de um ideal de satisfação. (DRUMMOND, 2016)


Podemos inferir várias coisas a partir disto. Primeiramente, muitos adolescentes acabam entrando neste discurso para conseguir fazer parte dos grupos, se você as vezes se define como heterossexual, você está fora de moda, é “careta”, mas ao mesmo tempo isto marca a dificuldade de se decidir e se posicionar que tem sido muito forte nesta nova geração de adolescentes. Para dizer que sou heterossexual, homossexual, bissexual ou qualquer outra coisa preciso me decidir, preciso tomar uma posição, e por que fazer isto agora, se posso fazer em outro momento? Outro fator interessante é que muitos destes adolescentes que invocam uma identidade sexual arbitrária, plástica em nome de uma reinvindicação do direito de autodeterminar seu próprio gênero, na verdade são muito mais assexuados ou vivem numa sexualidade solitária, sem relação com um outro corpo.


Diante deste gozo, cabe ao analista enviar o sujeito para sua singularidade. O despertar do desejo sexual traz efeitos diferenciados em cada um, mas de algum modo faz com que o corpo grite, e deste grito a psicanálise tentará extrair as soluções particulares diante dos impasses.Isso é um grande desafio para clínica, pois como é possível dar lugar à palavra e ao desejo numa sociedade onde impera o gozo e a ausência dos sintomas?


Muitos adolescentes buscam hoje a análise a partir dos tropeços com o real e das falhas na tentativa de se defender dele. De acordo com Silva (2016), talvez “o analista esteja na melhor posição de fazer a função de pai na contemporaneidade por saber que não o é. O analista deve estar à altura de sustentar a autenticidade do ato do adolescente apostando no adulto que há nele.”


O psicanalista aparece, então, numa tentativa de abrandar a dimensão sintomática deste sujeito, uma vez que é através de uma escuta que tanto a família como o adolescente poderão dizer sobre o que acontece, o mal-estar, o incômodo. Dessa forma, a análise apresenta a possibilidade de ir além do sintoma que mortifica, possibilitando ao sujeito sustentar sua mudança de posição subjetiva diante do discurso familiar, e consequentemente assumir uma mudança de postura e comportamento de um modo até mesmo mais saudável. É comum nos depararmos com adolescentes que assumem tal postura de enfrentamento dos limites e chegam a correr riscos reais (excessos de bebida, drogas, esportes radicais, etc.).


O sujeito não se constitui sozinho e mesmo antes dele nascer, já é permeado pelos aspectos culturais, sociais, familiares, e pelo desejo de seus pais. Como os encontros têm também suas falhas e seus fracassos, de uma maneira ou de outra isto afetará a criança, e muitas vezes se manifestará de forma mais clara no adolescente.A partir dessa constituição subjetiva podem surgir alguns sintomas. Neste sentido, o sintoma da criança e do adolescente pode sim ocupar o lugar de representante da verdade da estrutura familiar. No entanto, ao contrário de outras práticas clínicas a psicanálise não se contenta em pensar o sujeito apenas como um efeito da relação familiar.


Freud quando introduz o inconsciente também nas crianças já coloca nelas uma implicação em seu tratamento. Seguindo a mesma linha, Lacan, subverte o conceito de sujeito, e sendo o adolescente também um sujeito ele torna-se responsável pelo o que fazer com aquilo que a determina.


Portanto, a psicanálise visa dar um lugar de escuta e voz, tentando encontrar para essas “errâncias” dos adolescentes um ponto de maior estabilidade, para que ele consiga ser de um modo diferente, podendo ter o respeito que ele tanto clama, sem que para isto seja necessário praticar atos tão mortíferos.


Assim, é possível ao adolescente, por meio de suas singularidades, encontrar saídas diante deste encontro com o real, dando lugar aos seus sinthomas como um esforço de enunciação e invenção.




Referências


DRUMMOND, C. Adolescência: um esforço de enunciação. 2016. Disponível em < http://www.encontrobrasileiro2016.org/um-esforco-de-enunciacao> Acesso em 08 set. 2016.



FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Rio de Janeiro: Imago, 2006. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. VII.



________. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. (1914). Rio de Janeiro: Imago, 2006. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIII.



LACADEÉ, P. A bússola do sim e do não. Cien digital, Belo Horizonte, n.16. mai. 2014. Disponível em: <http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/ciendigital/n16/hifen.html >. Acesso em: 23 jan. 2016.



_________. O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2011.



LAURENT, E. Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2011.



MILLER, J.A. Em direção à adolescência. Minas com Lacan, Belo Horizonte, jun. 2015 Disponível em: < http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia/>. Acesso em 05 mar. 2016.


______. Perspectivas dos Escritos e outros escritos de Lacan: entre o desejo e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.


SANTIAGO, A. L. Procrastinação, autoerótica e depreciação: sintomas dos jovens com relação ao saber. 2016. Disponível em: < http://www.encontrobrasileiro2016.org/sintomas-de-jovens> Acesso em 08 set. 2016.


SILVA, R. F. Argumento do XXI encontro brasileiro do campo freudiano: Adolescência, a idade do desejo. São Paulo, 2016. Disponível em < http://www.encontrobrasileiro2016.org> Acesso em 08 set. 2016.

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