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O que Lacan tem contra os linguistas?

Neste cartel investigo as (des)conexões do pensamento de Lacan com o do filósofo franco-argelino Jacques Derrida. O interesse sobre o tema surgiu há tempos a partir do encontro com a passagem do Seminário: o sinthoma[1]:


[...] Uma escrita é, portanto, um fazer que dá suporte ao pensamento. Para dizer a verdade, o nó bo muda completamente o sentido da escrita, aquela que resulta do que se poderia ser chamado de uma precipitação do significante. É sobre ela que Derrida insiste, mas fica bem claro que eu lhe mostrei o caminho, como já indica suficientemente o fato de que não encontrei outro modo de dar suporte ao significante senão pela escrita grande S. (LACAN, [1975-1976] 2007, PP.140-141).


Desta forma nada melhor do que iniciar este estudo em um Seminário que tem como um dos temas a questão da linguagem e da letra. É importante marcar que as investigações estão em caráter inicial e ainda não chegamos ao capítulo em que Lacan faz menção literal a Derrida.[2]

Logo na primeira lição do Seminário Lacan já se lança no confronto com os lingüistas: seu uso do significante em muito incomoda aquelas acadêmicos, em especial pelo uso metafórico que o psicanalista confere a linguagem (LACAN, [1971] 2009). Porém neste Seminário o confronto não se restringe a apenas este ponto. Aqui a grande novidade é justamente Lacan atrelar significante e semblante, ao ponto de afirmar que todo discurso é semblante:


[...] Tudo que é discurso só pode dar-se como semblante, e nele não se edifica nada que não esteja na base do que é chamado de significante. Sob a luz em que hoje o produzo para vocês, o significante é idêntico ao status como tal do semblante. (LACAN, [1971] 2009, p. 15)


Daí que a questão enigmática que Lacan coloca é justamente a possibilidade de um discurso que não fosse semblante – indagação que percorre todo o Seminário. Parece que para ele a categoria do semblante é importante visto que é justamente ela que o permitirá “encontrar” o real, no sentido que o real é aquilo que fura o semblante. (LACAN [1971] 2009). Ainda: “[...] Nos limites do discurso, na medida em que ele se esforça por fazer com que se mantenha o mesmo semblante, de vez em quando existe o real [...]” (LACAN [1971] 2009, p.31).


O terceiro capítulo deste Seminário tem como título “Contra os linguistas”, nele Lacan desfere várias críticas à linguística, especificamente a ciência universitária. A fúria de Lacan se relaciona a produção de alguns linguistas da época que escreveram artigos a respeito do estilo do psicanalista bem como do seu uso do significante:


[...] os linguistas universitários, pretenderiam, em síntese, reservar-se o privilégio de falar da linguagem. O fato de ser em torno do desenvolvimento linguístico que se sustenta o eixo do meu ensino, portanto, teria algo de abusivo, que é denunciado segundo diversas formulações. A principal [...]enuncia que se faz, e eu cito, um uso metafórico da linguística [...](LACAN [1971] 2009, p.39)


A resposta de Lacan é bem taxativa: pouco importa o que os linguistas pensam de suas formulações. Seu interesse não é pela linguística e sim pela linguagem. Evidencia-se uma crítica ao discurso universitário, lugar em que se encontra a lingüística.


De forma não menos hilária Lacan provoca os linguistas: apesar de não ser um linguista - e fazer uso metafórico da linguagem, ele tem uma coisa que os linguistas não possuem: ele sabe chinês. E é justamente esta língua que permitirá ao psicanalista dar um importante ganho teórico de sua teoria. Segundo Lacan a língua chinesa não precisa de uma articulação de significantes para produzir um sentido – e aqui está o ponto surpreendente: ao mesmo tempo que critica os linguistas Lacan também está demonstrando os limites de sua consagrada leitura do inconsciente é estruturado como linguagem:


Em chinês, vejam só, é a primeira articulação que fica totalmente sozinha e que, assim, revela produzir sentido. Como todas as palavras são monossilábicas, não diremos que existe o fonema que não quer dizer nada e, depois dele, as palavras que querem dizer algumas coisas, duas articulações, dois níveis. Pois bem, sim, em chinês, mesmo no nível do fonema, isso quer dizer alguma coisa (LACAN [1971] 2009, p.45).[3]


Nota-se a evidência que Lacan confere ao fonema. A partir deste momento seu interesse será cada vez maior sobre a incidência do fonema, do significante sozinho, do discurso que não fosse semblante. Daí a importância da referência a escrita chinesa. Pois: “[...] No caso dos chineses, o que lhes confere o traço mais fundamental da língua é a escrita [...]” (ANDRADE, 2016, p. 59). É justamente a separação entre fala e escrita, presente na escrita chinesa, que permite a Lacan avançar em seus estudos:


[...] A letra já foi pensada como articulada ao fonema, ao passo que pensá-la articulada à separação entre fala e escrita pode conduzir a elevar o fonema para o centro do debate [...] (ANDRADE, 2016, p. 67).


Pois, se em um primeiro momento Lacan fez uso da lingüística de Jakobson e Saussure para fazer seu retorno a Freud já aí ele realiza uma torção: a prevalência do significante sobre o significado. No Seminário 18 observa-se um novo movimento: a tentativa de se pensar aquém desta dupla articulação, ou, como bem coloca Iannini (2012, p.268): “[...] é possível mover-se em um espaço em que o significante apareça como puro significante? [...]”. A partir desta tensão Lacan irá confrontar com estes dois postulados, ou seja, o inconsciente estruturado como linguagem e o estatuto da letra:


Em outras palavras, o sujeito é dividido pela linguagem como em toda parte, mas de um de seus registros pode satisfazer-se com à referência à escrita, e o outro, com a fala. (LACAN, 2003, p.24).


Referências Bibliográficas


ANDRADE, C. Lacan chinês: poesia, ideograma e caligrafia chinesa de uma psicanálise. Maceió: EDUFAL, 2016.

IANNINI, G. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.


LACAN, J. Lituraterra, In. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.


______. O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.


______. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2007.






[1] Vale a leitura a nota nº15 ao fim do mesmo Seminário. Jacques Alain-Miller dedicou uma longa nota contextualizando a relação conturbada entre os dois pensadores: “É claro que ainda há muito a dizer para esclarecer Derrida em contraste com Lacan, e vice-versa.(LACAN, [1975-1976] 2007, p.234).


[2] Capítulo 5: O escrito e a fala


[3] Lacan está criticando explicitamente a teoria da “dupla articulação da linguagem” de André Martinet.

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