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A letra de Lacan

Neste cartel continuo com a investigação desta tensa relação de Lacan com os linguistas, em especial Derrida. Tensão provocada pelo próprio Lacan que continuamente ao longo do seminário critica a linguística enquanto ciência e mesmo alguns linguistas, caso do referido Derrida. Com a leitura do Seminário percebe-se que esta crítica tem um fim: o uso muito especial que Lacan irá conferir à escrita.


Desta forma um ponto fundamental que Lacan nos coloca no quinto capítulo do Seminário 18 é: “[...] se a escrita pode servir para alguma coisa, é justamente na medida em que é diferente da fala – da fala que pode se apoiar nela. [...]” (LACAN, 2009, p.75). Por exemplo, a fala pode se apoiar na escrita “S(A)”.Lacan remonta a Aristóteles, em especial seus Analíticos, para afirmar que ali já se tinha uma escrita (com as proposições universais, por exemplo) e o que ele chama de cúmulo do escrito: a letra. Observa-se que o interesse de Lacan não é somente com a escrita mas também com sua redução, a letra.


Assim a implicância de Lacan não é sem propósito: seu uso da letra escapa em muito os propósitos linguísticos. Porém fica a questão: o que é a tal letra?


Vieira (2003) contextualiza este tema: “[...] Isso porque a letra tanto é escrita do sentido quanto marca do gozo do escritor. Dito de outro modo, este espaço virtual que tanto é gozo quanto sentido, é o litoral de Lacan [...]”. (VIEIRA, 2003, p.6). É muito interessante observar como o cartel se debruça sobre este enigma que a letra coloca: sua dificuldade de compreensão aparece quando tentamos explicar tal “conceito”. Parece que por isto que o exemplo do litoral parece ser tão rico: a letra enquanto aquilo que faz borda entre real e simbólico, ou, já que estamos falando de letra, entre R e S.


Minha forma de leitura do texto lacaniano parte de um pressuposto: Lacan está querendo resolver alguma dificuldade clínica. Ora, se coloco a clínica como horizonte penso que qualquer (re)formulação que Lacan propõe em seus escritos tem efeitos na prática. Desta forma quando Lacan traz a baila a questão da escrita isto tem uma consequência direta na clínica, em especial em relação a interpretação e de outro lado observamos o ganho teórico que a letra permite: o matema e as fórmulas da sexuação que serão apresentadas ao fim do Seminário.


Desta forma com a construção da noção de letra observamos que ocorre uma mudança no estatuto da interpretação. Ora, parece que já não estamos no registro da prevalência da busca pelo sentido, nos moldes típicos de uma interpretação freudiana. É justamente dentro desta perspectiva Lacan recorre a escrita chinesa.


Recapitulemos: Lacan ao longo do Seminário por diversas vezes afirma a diferença entre a escrita e a fala e ainda que a escrita tem a capacidade de repercutir na fala. O uso da poesia chinesa se justifica justamente ai, visto que a poesia chinesa, uma poesia totalmente sustentada pela escrita e é isto que: “[...] lhe possibilita operar tanto com o efeito de furo quanto com o efeito de sentido [...]”.(ANDRADE, 2015, p.07).


Segundo Lacan a língua chinesa não precisa de uma articulação de significantes para produzir um sentido – e aqui está o ponto surpreendente: ao mesmo tempo que critica os linguistas Lacan também está demonstrando os limites de sua própria teoria. Parece que todo o Seminário flerta com a questão da borda, do limite, uma tentativa de alguma forma “pinçar” o real, seja na busca de um discurso que não fosse semblante, seja na poesia chinesa e sua letra, parece que no horizonte Lacan está se questionando a possibilidade de “literalizar” o real:“[...] Nos limites do discurso, na medida em que ele se esforça por fazer com que se mantenha o mesmo semblante, de vez em quando existe o real [...]” (LACAN [1971] 2009, p.31).


Daí pensarmos: de que maneira a investigação da letra traz consequência para a clínica, em especial a respeito da interpretação? Temos uma pista:

[...] por isso, pouco importa se o som que se mantém seja o som de uma palavra produzida pelo equívoco, ou se são apenas gemidos ou barulhos. Trata-se sempre de uma escrita. Se um barulho se inscreve para um ser falante no lugar de um significante sem sentido, funcionando como letra, uma interpretação que opere a partir da letra e da escrita não precisa ser como uma palavra aceita pela norma culta. [...] (ANDRADE, 2015, p.05).


Será que podemos afirmar que a interpretação, no último ensino de Lacan, passa a ser poética? Porém uma poesia que não aponta para a construção de sentido e sim mais aos moldes da poesia chinesa? Será que os neologismos presentificados nos relatos de AE nos ajudam neste ponto? Ficam estas questões.


Referências Bibliográficas

ANDRADE, C. Lacan chinês: poesia, ideograma e caligrafia chinesa de uma psicanálise. Maceió: EDUFAL, 2016.

______. Escrita poética chinesa e a interpretação no último Lacan. In. Opção Lacaniana online nova série. Ano 6. Número 18. novembro 2015. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_18/Escrita_poetica_chinesa_e_a_interpretacao_no_ultimo_Lacan.pdf

LACAN, J. O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.


VIEIRA, M. A . O Japão de Lacan. Latusa (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 8, p. 35-39, 2003. Disponível em: http://www.litura.com.br/artigo_repositorio/o_japao_de_lacan_pdf_1.pdf

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