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A língua de Lacan


Na parte final do livro “A psicose ordinária: a convenção de Antibes” os participantes iniciam uma discussão a respeito da transferência nas psicoses ordinárias. Mais especificamente: como fazer laço com sujeitos que possuem uma relação tão singular com a língua que não fazem apelo ao S²? Inicia-se uma discussão sobre qual o lugar do analista: aprender a língua destes sujeitos (com todos os riscos que isto acarretaria) ou forçar estes sujeitos a uma tradução. Tentando resolver este enigma os psicanalistas lançam mão de noções linguísticas, como o conceito de língua privada e língua pública para no fim chegarem a uma conclusão: estes usos em nada ajudam a pensar a psicanálise pois esta leva em consideração o gozo e este passa ao largo de qualquer formulação linguística:


[...] A partir do Seminário 20, o conceito de linguagem em Lacan se decompõe, assiste-se a sua decomposição espectral. Ele se decompõe em duas partes, lalingua e o laço social, que são correlativas. Quando refletimos sobre esse Seminário, nos damos conta de que o conceito estruturalista da linguagem unificava, condensava lalingua e laço social. (BATISTA, LAIA, 2012, p. 357)


Esta parte chamou minha atenção pois ofereceu maiores componentes para a compreensão de um embate que perpassa todo o Seminário XVIII, ou seja, o confronte de Lacan com os linguistas. Laurent, na referida discussão, lembra que o Seminário XVIII é o momento em que Lacan começa a revisar sua noção de linguagem e para tanto ele não se apoiará na arbitrariedade do signo e sim na observação dos sulcos, ravinamentos, etc. Avistamos que com o desenvolvimento do Seminário o cerne da questão é justamente aquilo que Lacan chama de letra e o uso muito específico que ele dará a esta noção.


Na língua do lacanês estamos habituados a repetir que um significante representa um sujeito para outro significante. Penso que o hábito se enraíza a tal ponto que se torna tarefa árdua desvendar o que é esta letra que, ao contrário do significante não remete a nenhum significante.


Devemos lembrar que o embate com os linguistas permanece sempre presente neste Seminário. A respeito da letra em especial, existe uma briga implícita com Derrida. Justamente na época em que Lacan realizava seu Seminário, Derrida lançou um escrito intitulado “Freud e cena da escritura” em que ele fazia uma leitura de Freud, fazendo referências à carta 52 e o bem como ao bloco mágico. Basicamente, o filósofo propôs uma leitura de algumas obras freudianas a partir do traço e da escritura, ainda Derrida defende a tese de que a letra é primária em relação ao significante. Lacan não cita o nome de Derrida, mas confere várias críticas sobre este escrito:


Se eu tivesse achado aceitáveis os modelos articulados por Freud num Projeto a partir do qual descrever a abertura, a escavação de rotas calcadas na impressão, nem por isto teria adotado a metáfora da escrita. E, justamente, é nesse ponto do Projeto que não o considero aceitável. A escrita não é impressão, a despeito de tudo o que se fez como blábláblá sobre o famoso Wunderblock (LACAN, 2009, p.111)


Ora, mas é de certa forma forçoso exigir de um linguista ou de um filósofo uma teoria que levasse o gozo em consideração, quase como um objeto de estudo. Lacan está obcecado com a pergunta sobre a possibilidade de um discurso que não fosse semblante, que talvez possa ser traduzido nos seguintes termos: partindo do princípio que o próprio Lacan já afirmou que o significante é semblante, como fazer para tocar o real? Parece que aí se encontra a preocupação de Lacan: como sempre, uma preocupação clínica.


Primeiramente Lacan irá afirmar, e mais uma vez ao contrário de Derrida, que a letra é posterior ao significante. Ou seja, o sujeito está imerso em uma chuva de significantes, quando estes semblantes se rompem, esta chuva provoca ravinamentos que deixam depósitos nos sujeitos: a letra:


[...] a escrita não é primeira; em um primeiro lugar vêm os efeitos de linguagem que podem fazer uma marca inominável, ilegível como consequência de uma chuva de significantes que deixe um sulco por não valerem como efeitos de significação, mas somente como lugar de gozo. (ANDRADE, 2016, p.125).


Lacan afirma que a letra faz litoral e que o litoral não é uma simples fronteira. Logo, mais do que uma fronteira, o litoral é aquilo que bordeia dois espaços distintos possuindo características próprias:


[...] será que a letra não é o literal a ser fundado no litoral? Porque este é diferente de uma fronteira. Aliás, vocês devem ter observado que essas duas coisas nunca se confundem. O litoral é aquilo que instaura um domínio inteiro como formando uma outra fronteira, se vocês quiserem, mas justamente por eles não terem absolutamente nada em comum. Não é a letra propriamente o litoral? A borda do furo no saber que a psicanálise designa, justamente ao abordá-lo, não é isso que a letra desenha? (LACAN, 2009, p.109).


Em termos específicos, a letra é aquilo que faz litoral entre real e simbólico: “[...] Entre o gozo e o saber, a letra constituiria o litoral.” (LACAN, 2009, p.110). É um esboço de resposta para a pergunta do Seminário: um discurso que não fosse semblante que parece desembocar na construção das fórmulas da sexuação ao fim do Seminário: “[...] Não existe metalinguagem, portanto, mas o escrito que se fabrica com a linguagem poderia, talvez, ser um material dotado de força para que nela se modificassem nossas formulações [...] (LACAN, 2009, p.116)”. Ou seja, a letra é aquilo que, diferentemente de ser apenas uma fronteira, capaz de forçar uma revolução na própria língua lacaniana!


Agora, mesmo com as formulações de Lacan a respeito da primazia do significante em relação a letra, surge uma questão que extrapola este Seminário: sabemos que posteriormente Lacan cunhará o termo lalingua para falar desta língua própria de cada sujeito. Pergunto: qual a relação de lalingua com a letra? Se pensarmos que a letra é o resultado de lalingua sobre o corpo do sujeito, ainda podemos pensar em uma primazia do significante? Ou então devemos pensar em outros termos? (talvez topológicos):


[...] É a partir da linguagem que cada um faz sua lalingua. É a partir do significante tal como ele é, já aí, antes do aparecimento do sujeito, a partir do significante falado pelos outros, normatizado pelo Outro, etc., que há investimentos singulares, apreensões particulares, deslizes de pronúncia também [...] O alfabeto emburrece [...] (BATISTA; LAIA, 2012, p.360)


Referências bibliográficas:

ANDRADE, C. Lacan chinês: poesia, ideograma e caligrafia chinesa de uma psicanálise. Maceió: EDUFAL, 2016.

BATISTA, M. C. D.; LAIA, S. (Org.) A Psicose Ordinária – A convenção de Antibes. Belo Horizonte, Scriptum, 2012.

LACAN, J. Lituraterra, In. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

______. O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.



Mais-um do cartel “Seminário 18: de um discurso que não fosse semblante” que tem também os cartelizantes Christiano; Joselia; Tânia; Raquel Sela. O tema que investigo neste cartel é a relação (ou ausência dela das formulações de Lacan e Jacques Derrida

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