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Resumo sobre “O seminário sobre “A carta roubada”

O seminário sobre “A carta roubada” abre os Escritos e é um clássico no ensino de Lacan. Neste texto que podemos definir como do primeiro Lacan verificamos como noções como de intersubjetividade passa a dar lugar para um dos cânones do ensino lacaniano: a prevalência do simbólico sobre o sujeito.


Este texto de 1955 é caracterizado pela apropriação que Lacan faz do texto de Poe para demonstrar os percursos do significante e seus efeitos sobre o sujeito. É interessante notarmos que ao longo do seu ensino Lacan irá revisitar este texto; a título de exemplo, Lacan dedica uma das aulas de seu seminário sobre um discurso que não fosse semblante justamente a este texto.


Como dito anteriormente, este texto marca uma posição de Lacan: os efeitos da cadeia simbólica sobre o sujeito. Isto já está presente na primeira página do texto – os efeitos do simbólico são os determinantes para configurar as estruturas clínicas: “ [...] Mas nós estabelecemos que é a lei própria a essa cadeia que rege os efeitos psicanalíticos determinantes para o sujeito, tais como a foraclusão (Verwerfung),o recalque (Verdriingung) e a própria denegação ( Verneinung) -, acentuando com a ênfase que convém que esses efeitos seguem tão fielmente o deslocamento (Entstellung) do significante que os fatores imaginários, apesar de sua inércia, neles não figuram senão como sombras e reflexos [...]” (LACAN, [1955]1998, p.13). Posteriormente Lacan afirma que é a ordem simbólica que é constituinte para o sujeito.


Outro ponto interessante deste texto é que ele é contemporâneo do Seminário o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Se retomamos este Seminário observamos que lá Lacan apresenta o famoso apólogo dos três prisioneiros para demonstrar os três tempos lógicos de uma decisão (ver, compreender, concluir) bem como a função da pressa. Pois, em sua interpretação do conto de Poe Lacan fará uso do mesmo esquema: “[...] O primeiro é o de um olhar que nada vê: é o Rei, é a polícia. O segundo, o de um olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ver encoberto o que ele oculta: é a Rainha, e depois, o ministro. O terceiro é o que vê, desses dois olhares, que eles deixam a descoberto o que é para esconder, para que disso se apodere quem quiser: é o ministro e, por fim, Dupin. [...]” (LACAN, [1955]1998, p.18).


Lacan afirma que irá investigar como ocorre o deslocamento dos sujeitos ao longo do conto. Para o psicanalista isto ocorre justamente por conta da posse da carta(lettre) que produz efeitos nos sujeitos.


Avançando um pouco mais Lacan fala sobre a insistência do significante, a repetição. Afirma que isto se dá justamente por conta da cadeia simbólica e consequentemente ele nos confere uma importante indicação clínica: “ [...] Esta digressão não é aqui apenas uma convocação de princípios longinquamente endereçada aos que nos imputam ignorar a comunicação não-verbal: ao determinar o alcance do que o discurso repete, ela prepara a questão do que o sintoma repete [...]”. (LACAN, [1955]1998, p.21). Lembramos que neste momento um dos pontos de investigação de Lacan é justamente o automatismo de repetição freudiano.


Ao longo de todo este texto observamos Lacan defendendo a tese da primazia do significante sobre o sujeito.


Ao longo de algumas passagens observamos que Lacan confere a carta o estatuto de falo, visto que, tal como o falo, o psicanalista coloca a carta como símbolo de uma ausência: Pois o significante é unidade por ser único, não sendo, por natureza, senão símbolo de uma ausência. E é por isso que não podemos dizer da carta/letra roubada que, à semelhança de outros objetos, ela deva estar ou não estar em algum lugar, mas sim que, diferentemente deles, ela estará e não estará onde estiver, onde quer que vá. [...]”. (LACAN, [1955]1998, p.27).


Posteriormente é muito interessante observarmos como Lacan apresenta suas definições de real e simbólico. É de grande interesse pois sabemos que o psicanalista não sustentará tal posição em seu ensino, especialmente em relação ao real. Pois, neste momento teórico o real é algo imutável, aquilo que sempre retorna ao mesmo lugar enquanto que cabe ao simbólico a capacidade de mudança, tal como é muito bem explicado pelas movimentações da carta ao longo do conto de Poe: “[...] Pois, quanto ao real, não importa que perturbação se possa introduzir nele, ele está sempre e de qualquer modo em seu lugar, o real o leva colado na sola, sem conhecer nada que possa exilá-lo disso.” (LACAN, [1955]1998, p.28).


Posteriormente Lacan afirma que o significante não é funcional, ou seja, ele não tem um único sentido. Desta maneira não se pode afirmar que a carta cumpre sua missão quando chega a destinatária. É justamente os efeitos do significante naquele que está em posse da carta que interessa Lacan. A este respeito Lacan remonta o conto: a carta da rainha é um símbolo de um pacto (no caso o pacto de fidelidade da rainha com o rei.). Desta forma qualquer um em posse desta carta situa-se automaticamente como infringindo o pacto: “Pois aquela que encama a imagem benevolente da soberania não pode acolher acordos, mesmo privados, sem que eles impliquem o poder, e não pode prevalecer-se do sigilo perante o soberano sem entrar na clandestinidade. Portanto, a responsabilidade do autor da carta passa ao segundo plano, comparada àquela de quem a detém, pois a ofensa à majestade faz-se acompanhar, nesse caso, da mais alta traição”. (LACAN, [1955]1998, p.31).


Lacan afirma sobre a prevalência do significante sobre o significado. Lacan brinca com o título do conto de Poe para brincar com a homofonia purloined letter para a carta desviada, a carta que não foi retirada (pur-longée).


Um ponto interessante deste texto é que Lacan afirma que o verdadeiro sujeito do conto é carta: “[...] é por poder sofrer um desvio que ela tem um trajeto que lhe é próprio. Traço onde se afirma, aqui, sua incidência de significante. Pois aprendemos a conceber que o significante só se sustenta num deslocamento comparável ao de nossas faixas de letreiros luminosos ou das memórias giratórias de nossas máquinas-de-pensar-como-os-homens, 25 e isso, em razão de seu funcionamento alternante por princípio, que exige que ele deixe seu lugar, nem que seja para retomar a este circularmente (LACAN, [1955]1998, p.33).


Mais uma vez a respeito da incidência do significante sobre os sujeitos, afirma: “[...] não é apenas o sujeito, mas os sujeitos, tomados em sua intersubjetividade, que se alinham na fila - em outras palavras, nossos avestruzes, aos quais eis-nos de volta, e que, mais dóceis que carneiros, modelam seu próprio ser segundo o momento da cadeia significante que os está percorrendo (LACAN, [1955]1998, p.33).


Ainda: “Se o que Freud descobriu, e redescobre com um gume cada vez mais afiado, tem algum sentido, é que o deslocamento do significante determina os sujeitos em seus atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte, não obstante seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta o caráter ou o sexo, e que por bem ou por mal seguirá o rumo do significante, como armas e bagagens, tudo aquilo que é da ordem do dado psicológico. (LACAN, [1955]1998, pp.33-34).


Fala novamente sobre os efeitos da posse do significante sobre os sujeitos e como eles revezam no conto: “Eis-nos aqui, de fato, novamente na encruzilhada em que havíamos deixado nosso drama e sua ronda com a questão da maneira como os sujeitos se revezam. Nosso apólogo serve para mostrar que são a carta/letra e seu desvio que regem suas entradas e seus papéis. Não sendo ela reclamada [en souffrance], eles é que irão padecer. Ao passarem sob sua sombra, tornam-se seu reflexo. Ao entrarem de posse da carta/letra - admirável ambiguidade da linguagem -, é o sentido dela que os possui” (LACAN, [1955]1998, p.34).


A parte final do texto de Lacan tem um ponto muito interessante: o efeito feminizante da carta. Para o autor, quem fica de posse da carta automaticamente fica em uma posição feminina: “[...] posse nefasta, por só poder escorar-se na honra que ela desafia, e maldita, por convocar aquele que a sustenta à punição ou ao crime, que rompem, ambos, sua vassalagem à Lei. [...]” (LACAN, [1955]1998, p.35).


O próprio sábio inspetor Dupin, ao realizar sua vingança, não fica imune aos efeitos da carta. Antes de entrar neste ponto, convém lembrar a especificidade da vingança do inspetor: ele faz com que o ministro saiba que foi ele, Dupin, que o tapeou. Para Lacan: “Pois o que importa ao ladrão não é apenas que a dita pessoa saiba quem a roubou, mas também que saiba com quem está lidando como ladrão; é que ela o julga capaz de tudo, o que é assim preciso entender: que ela lhe confere a posição que não está à altura de ninguém realmente assumir, por ser imaginária - a do mestre/senhor absoluto”. (LACAN, [1955]1998, p.37).


Lacan fala sobre o efeito feminizante da carta sobre o ministro: “[...] é significativo que a carta que em suma o ministro endereça a si mesmo seja a carta de uma mulher: como se, por uma convenção natural do significante, essa fosse uma fase pela qual ele tivesse que passar. (LACAN, [1955]1998, p.39).


Mais adiante Lacan mais uma vez comenta sobre os efeitos do significante sobre o sujeito: “[...] efeito do inconsciente, no sentido exato em que ensinamos que o inconsciente é que o homem seja habitado pelo significante [...]” (LACAN, [1955]1998, p.39).


Uma analogia muito interessante que Lacan faz com o texto de Poe é justamente em relação ao pagamento em análise. Ora, no conto de Poe Dupin desvenda o mistério muito rapidamente porém é só depois de receber o pagamento que ele fala sobre a resolução do caso. Assim também acontece na análise: nós, que nos fazemos emissários de todas as cartas/letras roubadas que, ao menos por algum tempo, ficam conosco en souffrance, sem ser retiradas, na transferência. E não é a responsabilidade que sua transferência comporta que nós neutralizamos, fazendo-a equivaler ao significante mais aniquilador possível de toda significação,isto é, ao dinheiro? (LACAN, [1955]1998, p.41).


Porém mesmo com a toda a genialidade de Dupin ele não vai conseguir escapar das amarras da carta, fazendo para de seus deslocamentos e sentindo os efeitos de sua posse: “[...] Dupin realmente é, portanto, parte integrante da tríade intersubjetiva e, como tal, acha-se na posição intermediária antes ocupada pela Rainha e pelo Ministro [...]”(LACAN, [1955]1998, p.42). Ora, como demonstrado ao longo do artigo de Lacan, quem fica da posse da carta automaticamente passa a ocupar uma posição feminina: “[...] É assim que Dupin, do lugar onde está, não pode impedir-se de experimentar, contra aquele que o interroga dessa maneira,uma raiva de natureza manifestamente feminina [...]” (LACAN, [1955]1998, p.44).


Outro ponto de grande interesse é Lacan colocar o lugar do Rei como o lugar do Sujeito. Nesta comparação curiosa Lacan está afirmando a imbecilidade do Sujeito, ou seja, este é aquele que não sabe nada (tal como o Rei do conto): Digamos que o Rei, aqui, é investido, pela anfibologia natural ao sagrado, da imbecilidade que provém justamente do Sujeito. (LACAN, [1955]1998, p.42).


Posteriormente temos um ponto muito importante e que irá fazer parte das investigações posteriores de Lacan, marcadamente em seu Seminário De um Discurso que não fosse semblante: “[...] o que resta de um significante quando ele já não tem significação [....]”(LACAN, [1955]1998, p.43).


Por fim Lacan termina seu artigo com a célebre afirmação que uma carta sempre chega ao seu destino, evidenciando aí que o emissor sempre recebe do receptor sua própria mensagem de uma forma invertida.

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