Freud e Lacan e o problema da “análise obsessiva”
Tema do Cartel: Leitura de textos de Jacques-Alain Miller sobre o passe. Membros do Cartel: Alberto Murta (Mais-Um); Renato Vieira; Lucas Fraga Gomes; Elisa Martins Oliveira
Começo explicando o título deste trabalho que é também o tema da minha investigação no cartel que participo: o que chamo de “análise obsessiva” diz respeito, em especial, a uma análise centrada na interpretação. A curiosidade sobre o tema surgira há algum tempo, quando me deparei com algumas passagens dos últimos Seminários de Lacan em que ele chamava Freud de “sensato”. O termo fazia alusão ao fato de Freud não ter conseguido abandonar sua crença no sentido na direção do tratamento. O que pretendo tentar desenvolver aqui é que muito da “sensatez” de Freud diz respeito aos impasses que ele mesmo não pôde atravessar em sua própria análise. Assim, seguindo com o Miller, podemos falar que a invenção lacaniana, o passe, é a solução frente ao impasse de Freud.
Partimos do pressuposto presente nos textos freudianos e em especial em seus casos clínicos: para Freud existe um impasse que todo sujeito irá se deparar: a castração. Para Freud isto era algo estrutural, ou seja, impossível de escapar e que se transformou em um problema quando se pensava em um final de análise. Além deste ponto fundamental temos o fato de que todos os casos apresentados por Freud são marcados pelo aspecto contransferencial, ou seja, segundo Miller (2018) o desejo de Freud era marcado por um atravessamento da ciência. A respeito deste ponto Miller (2018) chega a afirmar que Freud acredita na cura epistêmica, ou seja, uma cura pelo saber. Freud acreditava que ao interpretar o sintoma de seus pacientes e eles tomarem consciência do sentido de seus mal-estares isto implicaria em uma cura. Ora, esta posição falava mais da relação de Freud com o saber do que a de seus pacientes, fato atestado por Dora quando “abandona” o tratamento com Freud. Segundo Miller (2018) a questão de Freud com o saber (e com a mestria) era tão evidente que o fez não se atentar para os aspectos transferenciais de uma análise. Freud não suportava se colocar na posição de enigma para seus analisantes.
Temos então aquilo que chamei de “análise obsessiva”, ou seja, uma análise que se aferra ao sentido acaba por se transformar em um ritual, quase um ritual obsessivo e que, como tal, tende ao infinito:
[...] se a interpretação opera na retroação de S² sobre S¹ não há fim de análise no plano da interpretação. Há análise undenlich. É justamente por isso que faz com que a interpretação tenha campo bem amplo na religião. Não esqueçamos que é a religião que nos ensina a interpretação. Nela, encontra-se o infinito em que Deus habita. Contudo não é apenas a religião que nos ensina o que é a interpretação; há o delírio de interpretação. Observa-se, hoje, entre os psicanalistas, ao menos entre os latinos, uma valorização da interpretação como algo significativo. Nessa perspectiva, a psicanálise tende ao delírio da interpretação. (MILLER, 2018, p.18)
Como sabemos Lacan aceita a tese freudiana, porém com uma importante torção: é justamente neste impasse que podemos articular uma saída de análise. Temos aqui a primeira formulação sobre a teoria do passe, ou seja, a travessia da fantasia com a separação do objeto. De acordo com Miller (2018) com a formulação da travessia da fantasia Lacan demonstra o caráter rotineiro da análise, ou seja, a insistência, a repetição que diz respeito ao objeto a. Temos aqui uma feroz crítica de Miller aos analistas que entendem a análise enquanto fascinação poética e efeitos de interpretação: “[...] Ser inspirado não cabe ao analista, nem ao analisante. A experiência analítica é um processo de extrema regularidade rotineiro, “quase burocrático.” [...] (MIILER, 2018, p. 21)
O que podemos observar é que existe certo fascínio pelo viés interpretativo, pelo deslize do significante. Miller (2018) afirma que isto seria uma idealização da experiência, algo que inclusive a IPA subscrevia. Ora, o que subjaz a este encantamento é justamente o objeto a. Caso o analista não se atente ao objeto enquanto aquilo que dá consistência ao sujeito, uma análise tende ao infinito, fato percebido por Freud.
Concluímos que existe algo que o sujeito não escapa: o efeito residual, aquilo que resiste a interpretação, esta viscosidade encarnada pelo objeto a. Este é o responsável pela repetição em análise, ou, retomando o termo de Miller, o aspecto burocrático da sessão. Fazendo então um pequeno esquema, temos que primeiro, não se encantar com o “canto da sereia” que são os efeitos de sentido (que muitas vezes vão ao encontro do sintoma) e em um segundo momento se deparar com o próprio objeto a. Só aí podemos falar de uma saída de análise. Finalizo com a questão do estado atual da minha investigação, ou seja, de que maneira isto se articula com a análise pessoal do analista? Sigo a bússola de Miller (2018, p.43):
“[...] A manifestação residual da análise é o analista. Sair de análise implica tentar deixar para trás essa manifestação residual. O analista, no entanto, é uma manifestação residual muito resistente [...]”
Referências bibliográficas: MILLER, J.A. Aposta no passe: seguido de 15 testemunhos de Analistas da Escola, membros da Escola Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2018.