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Maternidade, insatisfação e análise

Ao longo dos anos a instituição familiar sofreu modificações, e os novos modelos de família são influenciados não só por uma compreensão diferenciada desta instituição, mas também por avanços científicos. Isso provoca incertezas não somente sobre quem é o pai, mas também sobre quem é a mãe. O avanço da ciência possibilita hoje que casais com problema de esterilidade tenham filhos; que os homens possam e queiram ter filhos, independente de uma mudança de sexo; transexuais operados podem se utilizar da Procriação Medicamente Assistida; casais homossexuais poderão ter filhos seja pela adoção, ou ainda nascidos de uma Gestação Para Outro (No Brasil, isso não pode ter fins comerciais).

O que se nota é que tais avanços científicos e as transformações pelo direito, emancipam o desejo de se ter um filho, e isso torna-se independente da relação com o outro sexo. Fica mais clara a disjunção entre a mulher e a fêmea naturalmente mãe, e isso demonstra que não há a naturalização da maternidade ou o que o senso comum chama de instinto materno.

Dessa forma, Lacan (1969)1 ao falar sobre a função da mãe marca a necessidade de um desejo que não seja anônimo, ou seja, o papel da mãe não é o que satisfaz, mas o que traz a marca de um interesse particularizado por aquele indivíduo.

“Uma mãe é seu desejo mais as consequências simbólicas do Nome-do-Pai”.2 A mãe é também consequência de como ela se relaciona com a significação fálica, com o seu próprio Nome-do-Pai. Esse desejo é ainda ilimitado, e determina o lugar da criança no mundo. A criança com o seu corpo, já coloca um primeiro limite neste desejo da mãe, mas nem sempre é o suficiente.

Geralmente a criança não responde à todas as expectativas da mãe e a tudo aquilo que ela idealizou, e aí já começam alguns desencontros.

A mãe é a primeira figura que responderá ao apelo da criança, tornando-se também, uma mãe simbólica que exerce uma função de mediação, necessária na manutenção da vida da criança.

Por outro lado, o pai encarna uma função de barrar o gozo, sendo então um representante da lei, ou seja, aquele que permite um corte nesta relação dual mãe-criança, garantindo, assim, a singularidade do sujeito.

Não se define o que é ser homem ou mulher fora da linguagem ou fora do discurso, este mesmo discurso diz muitas vezes As mulheres nasceram para ser mães.

De acordo com Brousse3 (2018, p.57): “No sistema simbólico, o feminino, inseparável do masculino, responde ao mesmo funcionamento lógico. Dizer, por exemplo, as mulheres não nasceram para serem mães participa da mesma lógica que as mulheres nasceram para serem mães”.

Quando Lacan, através da fórmula da sexuação diz A mulher não existe, ele está rompendo também com a universalidade de que todas as mulheres nasceram para ser mães, mulheres existem, uma a uma.

Há hoje imperativos sociais que colocam a constituição da mulher atrelada à maternidade. Misturando, assim, o seu desejo às imposições e exigências de perfeição que acredita ter que satisfazer. O que é o desejo da mulher e o que é a demanda social?

O tornar-se mãe e o ser mulher não se recobrem, “[...] nomearemos ‘mãe’ o que, em uma mulher, pode ser preenchido em sua relação com seus filhos. Ao passo que nomearemos ‘mulher’ o que permanece profundamente insatisfeito em uma mulher, tenha ela, ou não filhos.”4 (LEBOVITS-QUENEHEN, 2018, p.190)

Com isso, o corpo da mulher ganha espaço para novos sofrimentos e novos sintomas. Um fenômeno muito marcante atualmente é o Baby Blues. Nele muitas vezes, pode acontecer da mãe não ver outra saída a não ser a morte, seja a sua própria ou a do filho. Os relatos muitas vezes se relacionam à dificuldade, estranheza, estremecimento ou dificuldades na travessia materna.

Na ausência de manual ou bula que funcione efetivamente no processo de construção da mãe ou, ainda, para a criança, cada mulher precisará inventar, a todo momento, uma resposta materna. Não há uma harmonia natural do par mãe- filho nos seres falantes, cada criança “porá à prova diferentemente enquanto mulher desejante e faltosa”5. (SOLANO-SUAREZ, 2018, p.91)

Por não saber o que fazer ou como lidar com tal situação, surge angústia, culpa, sintomas e devastação.

Entre as interrogações iniciais que surgiram com esse cartel, se o instinto materno é cultural, se ao separar desse ideal de maternidade o sofrimento da mãe-mulher poderia ser amenizado, qual a medida possível que permite a feminilidade habitar numa mãe, surge ainda, a questão de como a psicanálise pode comparecer.

A análise pode questionar a mulher sobre a sua responsabilidade na insatisfação que carrega, permite ainda que elas não coloquem seus filhos como o objeto que vai tamponar o seu gozo de mulher, mas encontrem um meio de usá-lo sem ter que pagar um preço de um sofrimento alto.

De acordo com Lebovits-Quenehen (2018, p.203) “Na medida em que a experiência analítica permite a uma mãe referir sua insatisfação ao ponto de real da mulher que a habita, o princípio da devastação mortífera, experimentado por algumas mães como mulheres, pode se tornar o princípio mesmo de um ganho de vida e matéria para alguma sustentação de seus filhos na existência. É nesse sentido que a experiência analítica, que não prepara para ser mãe- nada prepara para isso -, torna, no entanto ‘o amor mais digno’, como Lacan o afirmou”6.


1 LACAN, J. Nota sobre a criança (1969). In: ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p. 369-370.

2 VIEIRA, M.A.; BARROS, R.R. Mães. Ed.Subversos, 2015. Citação da p.29

3 In: ALBERTI, C.; ALVARENGA, E. Ser mãe: mulheres psicanalistas falam da maternidade. Belo horizonte: EBP, 2018.

4 Idem.

5 Idem.

6 Idem.

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